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Ilustração: Annie Bonham |
cicciolina
loira falsa e libertária,
la puttana, cara llona,
muito mais que mercenária,
liberava-nos a cona.
provável, se atriz não fora,
que ela não cobrasse nada,
feito a menina de outrora,
amiga da garotada
e força da natureza,
dando à toa, dando à vera,
já cingindo-lhe a cabeça
coroa de flores e heras.
se ontem mesmo não foi séria
nas surubas da política,
venerável e venérea,
outra messalina mítica
(a sex-sêneca pagã,
de-putada expondo as tetas,
quase apaziguou saddam
prometendo sua greta),
que dizer daquele tempo
em que dava a três por quatro,
em que nós, cheios de alento,
a louvávamos no quarto?
não tornou gostoso o dia,
ninfame extraordinária,
e ensinou quem mal sabia,
professora abecedária?
e no cine morgenau,
aos homens cegos de breu,
homens sós pelo ervaçal,
quantos sóis ela acendeu.
diz do sexo que é sombrio
quem não viu em cicciolina
a rosa primaveril
abrindo-se, proserpina.
mais que o sexo, a própria vida
é sombria – sete selos.
se o que nasce é despedida
e sofrer é dor, não rima,
o sexo ainda ilumina
um quarto de pesadelos.
[a felicidade,]
cria de nossa tristeza,
ficará como deve:
no ombro do idiota,
leve, trama de palha
em lugardas vísceras,
um pássaro verde:
desajeitadamente alegres
entre pernas e perdas.
uma igrejinha
nada é mais patético e belo
e difícil
que a igrejinha abandonada:
o capim no altar, as goteiras,
a infiltração das estrelas
e as velas gastas
como pequenos pilares
do escuro.
nunca vi
uma igrejinha baldia,
mas,
se agora a vejo
(as lembranças tomadas de mato,
uma única açucena),
algo em mim que remontasse
campeia por dentro,
monta ali acampamento
ou indigência
e me lembro:
da poesia,
de algum deus que não se lembra.
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Ilustração: miki3d |
canto I/ canto único (ou: inspeção da carcaça de um anjo por um destacamento de moscas sequiosas)
o anjo [da história] gostaria de se deter,
despertar os mortos e reunir o que foi despedaçado (...)
walter benjamin
não, companheiro,
eu não diria "um pássaro de pano
enquanto voa", eu não diria isso; eu diria:
uma mosca...
uma mosca é mais terrível
que um botão de flor, que a campainha;
uma mosca (e outra mosca e outra ainda)
que pousasse, terrível
nos terríveis,
nos botões e nos gatilhos
em washington, cartago e hiroshima,
em troia e bagdá, em katyn
ou treblinka.
moscas dos verões berlinenses, entre
61 e 89,
passeavam – e livremente –
dos lixões ocidentais, onde
um braço decepado apodrecia,
às fezes semilíquidas
de burocratas do partido.
mosquinhas delicadas, idem:
roçaram os arames, os alarmes e vigias
e punham ovos
nos pomares de potsdam,
na árvore sem lembranças
em que enforcaram também suas crianças
os últimos nazistas.
mesmo ao lancetado cristo, ó
meu cúmplice, quando
debandavam os apóstolos, é bem possível,
que uma ou duas moscas
lhe fizessem companhia.
moscas mesmo sobre os corpos
de heitor e lincoln, menelau ou bonaparte,
aquiles, lênin, nixon.
e se ora elas põem ovos
eu não diria "um pássaro de pano
enquanto voa", eu não diria isso; eu diria:
uma mosca...
uma mosca é mais terrível
que um botão de flor, que a campainha;
uma mosca (e outra mosca e outra ainda)
que pousasse, terrível
nos terríveis,
nos botões e nos gatilhos
em washington, cartago e hiroshima,
em troia e bagdá, em katyn
ou treblinka.
moscas dos verões berlinenses, entre
61 e 89,
passeavam – e livremente –
dos lixões ocidentais, onde
um braço decepado apodrecia,
às fezes semilíquidas
de burocratas do partido.
mosquinhas delicadas, idem:
roçaram os arames, os alarmes e vigias
e punham ovos
nos pomares de potsdam,
na árvore sem lembranças
em que enforcaram também suas crianças
os últimos nazistas.
mesmo ao lancetado cristo, ó
meu cúmplice, quando
debandavam os apóstolos, é bem possível,
que uma ou duas moscas
lhe fizessem companhia.
moscas mesmo sobre os corpos
de heitor e lincoln, menelau ou bonaparte,
aquiles, lênin, nixon.
e se ora elas põem ovos
no tailleur de merkel, na lapela
dos financistas, nos bigodes
de todos os políticos,
na aposentadoria
de bush pai & filho & CIA
– como antes
nas florestas da bolívia
pisaram sem coturnos
o rosto mais fashion
do socialismo –,
entortam, isso é certo, moscas-musas,
também a pose de carla bruni (enésima-
neta de cesare, felipe o belo)
supirando, ciciando uns versos
de emily dickinson...
dos financistas, nos bigodes
de todos os políticos,
na aposentadoria
de bush pai & filho & CIA
– como antes
nas florestas da bolívia
pisaram sem coturnos
o rosto mais fashion
do socialismo –,
entortam, isso é certo, moscas-musas,
também a pose de carla bruni (enésima-
neta de cesare, felipe o belo)
supirando, ciciando uns versos
de emily dickinson...
e embora eu ame maiakóvski – o maior
poeta entre os políticos –
e me toquem mais que o claro enigma
as cartas de drummond a stalingrado,
nada impede que seja um "pássaro
de pano" imagem bem ridícula.
nada disso impede, meu amigo,
que uma mosca seja a lira, dos homeros
a concisa, cantando aos mortos num campo de batalha;
nada impede
que uma mosca seja tanto
ou mais poética
que um avião de guerra, um helicóptero
sobre as torres de petróleo líbio:
pois se a mosca pousa e alça voo, meu
irmão de tinta – cara,
acredita! –,
também levanta os pós e as areias,
também encrespa as águas e cabelos,
espalha as páginas avulsas
dessa tua ilíada.
também encrespa as águas e cabelos,
espalha as páginas avulsas
dessa tua ilíada.
a aurora é tão viva, tão nova
e antiga,que seus únicos fósseis
são os pássaros vivos (o canto
violento dos pássaros vivos), são
os únicos fósseis possíveis
Rodrigo Madeira (Foz do Iguaçu, 1979). Poeta. Vive em Curitiba desde 1992. Autor dos livros Sol sem pálpebras (Imprensa Oficial, 2007) e Pássaro ruim (Editora Medusa, 2009). Os poemas acima fazem parte do livro O latim das moscas(inédito).