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O erotismo na poesia de Líria Porto

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Ilustração: Akif (Hakan) Celebi



entra sem bater

os braços as pernas a boca a
porta
fico aberta vinte e quatro
horas



ganidos

finquei todo meu desejo
no branco lençol do leito
deitei-me só e de borco
e assim eu em decúbito
abraçada ao travesseiro
farejava o teu cheiro
qual um cachorro

meu corpo de tanta ânsia
derramava a substância
advinda do meu cio
as lágrimas me afogavam
afundavam-me em areia 
movediça

a fresta entre minhas pernas
jogadas de qualquer jeito
abrigava a rejeição
as ausências repetidas
das vezes que te chamei
sem retorno

não vieste não virás
e o vão do meu umbigo
a ganir nos teus ouvidos
não te deixará



da última vez

meu corpo
ao ver-te tão sorrateiro
faz canção de bem-te-vi
e ao som de um bolero
no laço do teu abraço
vira flor de sabugueiro
cheiro de mato
capim brabo

com a sede do deserto
bebe água chega perto
rodopia tem vertigem
tem inocência de virgem
recebe a ti todo
inteiro

(não desmaiei
eu morri)



fragrâncias

ele enfia a cara
entre suas pétalas
parece que a dona
(pele perfumosa)
tem dentro um jardim
que ele pesquisa
como cientista
seres que procuram
a suprema essência
ou a própria origem



regresso     

saio de mim quando volto
até encaixar os ossos
os órgãos a sombra
ajustar os pensamentos
levo um tempo

saio de ti não demoro
fico mesclada a teu corpo
um só corpo – passo
de dança



dormentes   

o corpo quieto estirado na cama
a alma vagueia por mundos e sonhos
e vai à espanha toureia o toureiro
e vai onde estejas te beija te beija
igual passarinho por céus e distâncias

conhece oceanos navios outros ares
corsários paragens reinados rebanhos
a alma é liberta o corpo é escravo
e peca e cansa padece envelhece
enquanto a alma prossegue encantada



sopa   

a nudez lateja debaixo do vestido
o marido chega as vontades pulsam
e ana corta cebolas



Ilustração: Luca Granai


satélite  

no universo da pele
o maior órgão do corpo
a sensação que me impele
a girar no seu entorno



mato seco    

ando morto de saudades
de beijar a tua boca

de deixar que venha à tona
o que está a sete chaves

de fazer com que esse fogo
que incendeia a minha noite

também queime o velho corpo
de dizer sem ter vergonha

que anseio o amor
da carne



oferecida

dois palmos de saia
blusa de oncinha
as botas de salto
sem roupas de baixo
e sem agasalho
à espera de quem
nem sabia

(com beijo na boca
é o dobro)



apetite

adão e eva – inocentes
aceitaram da serpente
a maçã que era de deus

(e assim nasceu caim)

que fome filha da puta
gostaram tanto da fruta
mais saborosa que mel

(e assim nasceu abel)



água benta

atiça o fogo do padre
fá-lo sentir-se bonito
o padre ergue a cabeça
o corpo inteiro se excita

o padre abraça-a beija-a
morde-a nos lábios mamilos
o ardor se faz e o alvoroço
faz crepitar a basílica



dureza

os grandes lábios de dora
a bicá-los – um pica-pau



lavação

a quarar sobre a cama
esperava que a alma clareasse
e pecava pecava
pecava

(a quarar sobre a grama
a fama o tatame)

depois ia ao confessionário



sem piedade

enviuvei-me pela quinta vez
matei os zangões
agora espero as libélulas
seres de asas translúcidas
que não me exijam mel
e tragam-me 

néctar



Líria Porto - professora, poeta, natural de araguari – mg – autora dos livros borboleta desfolhada de lua, publicados em portugal – 2009 – e garimpo asa de passarinho, publicados no brasil pela editora lê – 2014.


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