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uM CoNTo De FáTiMa BRiTo

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A Lua e eu aiNDa MeNiNa
Por Fátima Brito       

     Sou advogada, mas li um microconto. O que é um? Fast-food das palavras. Talvez esteja sendo injusta. O menino deixou seu sangue sobre o asfalto estuprado pelas rodas do 1.8. Ao redor, alguns curiosos. Alguns passantes fizeram o sinal da cruz. Nada foi anunciado no Jornal Nacional. Tudo aconteceu no dia em que a Standard and Poor rebaixou o rating dos Estados Unidos. A vida prosseguiu. Há muito o que fazer em uma situação de crise. Também li alguns provérbios bíblicos e todo dia leio muitos artigos da Constituição de meu país. Meu país! Durmo com eles e com problemas alheios que devo resolver. Nasci para problemas alheios. Mas li algumas poesias. E hoje li a carta que ele me deixou no meio de um de seus discos preferidos. Guardei-a entre as páginas amareladas do meu livro de horóscopo chinês. Ele a escreveu pouco antes da morte; por isso, quando a pego, sinto cheiro de fim e arrepio-me. Corro até o espelho.
     Hoje tomei uma garrafa de vinho e saudei a lua  que invadia a janela estreita de meu escritório. De novo espiei no asfalto o seu sangue quente e aspirei o ar frio que envolvia suas rugas no caixão. Sorri do terno azul comprado de última hora a ser pago em suaves prestações junto com o caixão de qualidade intermediária. Quantos anos se passaram? Ele ficaria confortável se ainda estivesse aqui e pudesse dividir comigo os mais de duzentos metros quadrados do apartamento sofisticado em que moro no mesmo bairro que o viu chegar de tão longe. A areia da ampulheta eternamente lhe sussurraria palavras quase indecifráveis como aquelas com que ele tanto tentava se comunicar.  Tão diferentes seus olhos, plenos de mapas desenhados por um brilho que ensinava caminhos. Seus olhos. Eu traduzia sem desespero cada uma de suas palavras.
     Então, não me deixando sugar pela claridade da janela, cheirei o sangue doce de minha mãe lutando pela vida com a garganta torturada pelas dezenas de comprimidos diários. Mas já faz tanto tempo não é mesmo, menina Cri? Já faz tanto tempo, menina. Agradeci a generosidade de tanta luz.  Magrinha, agarrada às histórias de princesas, bruxas e dragões, já me apoiava nela. Nos poucos passeios de carro, punha o olho pela janela e lá estava ela, me acompanhando.
     O celular não tocava, a televisão insistia em tagarelar e lá fora a mulher que cuidava da rua já não mais existia. Não havia cães de guarda e eu restava ali envelhecendo entre códigos, edições diversas de bíblias, alcorões e talmudes.  O celular mudo gritava amigos não existem. As paredes e as lembranças, os pais já não mais existem. O olhar sem o brilho de antes e a vivacidade ofuscando-se anunciavam a crescente impossibilidade dos filhos que ainda não tinham vindo. Era isso o que ele temia. Meu mártir. Não sei ao certo se existem mártires. Mas existem mares azuis e homens que amam com urgência. Olhei pela janela. Tudo mudava, e ela sempre ali, sempre a mesma.
     Não entendo microcontos. Agarro-me às longas narrativas. Com elas ganho meu pão e recupero a cada dia minha história. E hoje ela se resume mais que tudo a lembranças. As que não tenho, crio. É assim que vejo seu corpo magrinho bailando no espaço, sob a luz da lua dos açudes e do sertão, descendo, descendo, descendo. O sorriso antes de chegar ao asfalto. Baque surdo.
     Isso importa? Já não sei. A lua não desiste de me convidar a bailar lá fora. Venceu-me. Não vou me jogar pela janela em busca de meu reflexo. Vou devagar procurar o moço do banco da praça. Ele me olhou na tarde de ontem. Ele me olha há incontáveis tardes e meu medo apenas me empurra na direção de suas mãos. Não nasci pra carvalho. Em meio de códigos e bíblias e discos velhos, quero gritos de crianças, quero continuar, quem sabe encontrar minhas próprias músicas. A lua não iluminará meu corpo dançando rumo ao chão.
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Conto que integra o volume Entre o elevador e a praça (Patuá, 2012).
Imagem: "Loneliness", de Alice Neel (1900-1984)


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