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Travessias - Mayumi Aibe

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Ilustração: Swiety Turecki



   Era difícil enxergar por inteiro aquele navio atracado no porto de Yokohama, por causa das dimensões da embarcação e, principalmente, da claridade. Sem permissão para se afastar dos parentes, ocupados em se despedir, ele movia o pescoço e os pés, aparava a luminosidade com as mãos, tentando achar um ângulo em que pudesse avistar as duas extremidades, o mastro mais alto e o mar contornando todo o quadro.
            Mas era impossível abarcar em um único retrato a experiência de estar diante do Argentina-maru.


***


            A viagem da irmã mais nova foi cancelada de última hora. Alguém disse que era melhor ter cautela, pois ela não teria idade suficiente. Ficou decidido: a menina ficaria em casa com a mãe e o bebê.
            Achou-se importante por ser mais velho. Só os homens teriam condições de fazer uma viagem dessas. Só ele iria morar com o pai no novo país.


***


        A menina olhava o navio e ficava nervosa por não saber quando se veriam novamente.
Viajar parecia ser algo grandioso, um assunto que ocupava o tempo dos pais e exigia longas conversas entre eles.
            Ninguém explicou quanto tempo duraria essa viagem.


***


             Daqui a dez anos eu volto. Quando fizer 18  prometeu à irmã.
            Falou com clareza, sem sentir peso algum.
            Ele não teve medo, embora não tivesse recebido qualquer instrução a respeito da viagem.
            Dez anos seriam tempo suficiente para crescer e depois fazer o que quisesse.


***


            No final dos anos 1950, já havia uma colônia japonesa estabelecida no Brasil.
            Assim que chegou, o pai arranjou um trabalho. Ele ajudava.
            A promessa da infância continuou em Yokohama, alimentando-se, ganhando volume. Até virar história.


***


            Era o primeiro filho, uma honra.
            No novo país, não fazia mais diferença (estava sozinho).
            Ninguém mais sabia dele. Esqueceram-se.
            Acabava cada dia esquecendo um nome também.


***


            Habituou-se a falar muito pouco no Brasil.
            Falar português era difícil, mesmo para criança.
            Até saber o sexo dos objetos era exigido, em praticamente qualquer frase. Como é possível separar os femininos e os masculinos?


***


            No começo, tentava acertar, descobrir qual era a regra. Na prática, percebeu que prestar atenção na última letra das palavras não resolvia todos os problemas. Ainda assim caía em situações embaraçosas.
            As pessoas reparavam quando alguém confundia o sexo dos objetos.
            Com o tempo, deixou de se apertar. Quando a língua impunha essa distinção, ele simplesmente escolhia uma opção, ao acaso.
            Se errasse, ao menos as coisas não se mostravam ofendidas  nenhuma vez sequer.


***


            Quando ficaram maiores, os filhos começaram a dizer que era engraçado aquele jeito de falar.
            Ele continuava sem acertar. Ainda achava graça de quem inventou objetos fêmeas e objetos machos.

***


            O pai casou-se de novo. Ganhou novos irmãos, todos brasileiros.
            Somou alguns amigos, alguns agregados, mais os filhos  assim ele próprio inventou sua família brasileira.

***


            Cinquenta anos foram tempo suficiente:
            O Japão se tornou quase uma ficção. A história contada à noite por algumas memórias. Maleáveis como a ficção.
            Ainda restava algo para provar que ele esteve lá.
            Já a ideia de retornar era a ficção em carne viva, de tão impalpável.


***


            Foi atravessando o mar, voltou como quem segue até a linha do horizonte e depois sobe.
            Uma viagem pelo ar, pelo vazio. A vista do avião não era azul, mas cheia de brancos, diferentes tons e volumes de branco.



Trechos do conto Travessias, publicado no livro Orientes possíveis (Editora 7Letras, 2015).




Mayumi Aibe é jornalista e mestre em Literatura, Cultura e Contemporaneidade pela PUC-Rio. Atualmente, cursa o doutorado na mesma instituição com pesquisa sobre arte visual contemporânea japonesa. Orientes possíveis (Editora 7Letras, 2015) é seu livro de estreia.

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