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Estrelas velhas - Adriano de Almeida

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Ilustração: Gilad Benari


Estrelas velhas

Os galpões das fábricas do Brás, Bresser
como os mendigos
e suas estruturas cavadas suas 
ancas cavalgadas
Como mulher de rua, 
nua, o dorso cuspido
expulso da iconografia do país 
Como os mendigos 
e as locadoras de vídeo e os orelhões e as estradas de trem-
fantasma
Como os índios e as lendas
As confissões da adolescência
e as máquinas de escrever
como os canhões dos fortes costeiros
e as estrelas
e os mendigos
Ou então como os moradores de rua
que não são mais mendigos
que desistiram de pedir, desistiram
de roubar, ou de chorar, de se drogar
desistiram 
de enlouquecer
e é sem palavra ou riso
que se misturam ao encardido das metrópoles
E, mudos, cegos, serenos
apenas aguardam
nossa iminente ruína




Terceira pessoa

Entre o isto e o aquilo o meio-termo é uma ferida
Solidamente plantada 
pelo bolor do tempo
Dentro de mim vive um padre, um santo louco, 
um pedinte
Vive também um abominável doutor, 
homem sem juros ou concessões
Dentro de mim duas possessões
Animal escoiceando em largas avenidas, pelos faróis, aflito
Profundissimamente excessivo
na contenção e no estouro
no amor e no trabalho
na solidão e na guerra

Quem sabe uma terceira pessoa 
assuma de vez essa voz 
e entre uma vogal e outra 
faça nascer um sentido



Mundo de tapumes

Quem dera o mundo fosse de tapumes
E um corredor imenso socorresse
A ânsia, o medo, 
A insônia e o desespero 

Atada a gaze, a vista baça
Calado esse vulcão de cães sangrentos
E então apenas pó, os dentes presos
Circulação contida no cimento

Tão vertical e dura, a chama extinta
E o nervo convulsivo de um lamento
Atar-se finalmente em carne dura
A última pulsão desse tormento



Domingo

domingo é o mais cruel dos dias
com seus azuis minguando pelo chão da tarde
e é mais cruel
(e mais mordaz)
a noite
de domingo 
na música arrastada do evangelho
na fria e desleal face do espelho

domingo é um cativeiro


 
oco:

eco de um poço esquecido

vácuo: 

grito contido no gás

fosso:

é quando alguém designa um homem
à sua dura & cabisbaixa condição
é como se esmigalha
                                   num homem
seu destino e vontade

é quando se revela, a ele,
sua dura
e mortal
solidão

é quando um riso 
divertido e fresco
comunica o gozo
em vê-lo em maldição

poça: 

é o riso acumulado
lembrando a este homem que o sol também ri
e ri na consciência
                                   – medalha da vingança
desse homem solitário
gota contra o cucuruto
pica-pau
                                   maldito!
sobre o crânio

o homem parado à esquina
o rosto oblíquo de pecados
            esse homem ergue sua mão
            leva-a à boca e experimenta
o desgraçado gosto do dia
uma fossa
é quando o absurdo tornou-se ordinário
(costume
                                    pior salafrário
curtume da humana
condição)

mas o homem da esquina
ele também
brilho de espada
rastro de serpente
                                   ele       rirá
sua boca de fossa mostrando a dentama
o riso fluindo 
            cascata
                        e a fossa
            da boca
                        e o oco
          do peito
desarmarão a tortura e deixarão livre
esse homem, que é sujo
e se enoja
de si

o asco
é quando mesmo bom, caroável
adimplente
um homem é expulso dos seus
            como o pus expulsando
o espinho 



Autor de Entulhos (Patuá) e do blog não bastaAdriano de Almeida nasceu em São Paulo, em 1975. Escreveu como autor e colaborador para as editoras Ática, SM e FTD. Mestre em Letras pela USP, ministrou cursos e proferiu palestras em instituições como o SESC, o Colégio Oswald de Andrade e a Faculdade Rio Branco. Teve narrativas e artigos publicados nas revistas Celuzlose (n°1) e Crioula (USP, n°11 e n°14) e nos blogs Facada X e Lacaneando. Trabalha atualmente na escrita de seu segundo livro.


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