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os possíveis atravessando poemas de Lúcia Leão

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Obra de Jorge Emanuel, Espinho - em avidaelarga.com





vizinhos

aprendemos a pedir
uma à outra
aquilo
de que mais precisávamos
e a perdoar o que faltava
em nossa casa

ela me deu
açúcar, canela e mel
eu lhe dei
sal, pimenta e azeite

alguns dizem
que o que fazemos
é obra divina

para nós é simplesmente
pão. 





surpresa

a sombra rosa sobre o meu chá não devia estar ali. deveríamos estar tomando café preto, com borra, dentro do qual veríamos meu destino. já começou errado, falei, ao que ela riu, mexendo com uma colher prata o líquido marrom claro. tinha me garantido que hoje saberíamos se eu esperava uma menina, como eu queria, mas em vez de me assegurar respostas, disse para eu escrever no papel dourado com caneta preta o nome que daria ao filho se fosse homem. achei uma falta de respeito com o menino que não queria ter, mas ela afirmou que era assim que se desafiava o que poderia ter sido escrito antes para nós. que poderíamos mudar o sexo do bebê dentro de mim, naquele momento, se seguíssemos o ritual. inundou-me uma confusão de linguagens, se o que antes seria uma imagem no líquido preto se tornava então uma palavra negra sobre ouro. fiz o que ela falou e quando terminei a última perna da última letra da palavra filho, uma lágrima desceu, a bolsa d’água arrebentou. agora eu queria. tal a força das cores, dos amigos, das sugestões.





pegadas

seus passos chegam
abafados
pela sola de
borracha

blusa azul, céu incerto
um olho aberto
outro
meu

espera

descalça te carrego
afobada 
agora a blusa aberta
azul
a borracha apaga
o céu





aperitivo

o que arrumamos são prateleiras
não tâmaras
recheadas de queijo roquefort
que você escreve
como rock
e ri na minha boca
o açúcar derretendo amargo
no final 

nossos livros espalhados
em fotos vasculhamos
nosso coração e a alma
sem procurar, mas encontrando
na página certa o poema,
aquele poema que você
não consegue lembrar 

na bandeja nós os colocamos
recheados e prontos
os convidados vão comer com uma mão
esperando 



_________________________________________________
Lúcia Leão mora nos Estados Unidos há 23 anos, tradutora em tempo integral e escritora. Seu livro de contos, Ensaios a Dois, foi publicado em 2001 pela Editora Sette Letras. Seu segundo livro, O primeiro beijo, escrito em coautoria, foi publicado em 2005 sob pseudônimo pela Editora Escala como parte do Projeto Adolescer. Formada em inglês e respectivas literaturas, mestre em literatura brasileira com foco em filosofia. Traduziu vários livros de filosofia do francês para o português pela editora 34. Nos Estados Unidos, trabalha com traduções e escreve contos e poesias em inglês e em português. Em 2011, participou do “O Miami Poetry Festival”, onde apresentou seu trabalho nos dois idiomas (www.omiami.org). Em 2012, participou do Projeto “Conversations Across Borders” (CAB), cujo objetivo era permitir que dois escritores, a partir de diversos locais (regiões geográficas e/ou ou diversidade cultural), trabalhassem em colaboração nos temas água, ar, fogo e terra.  (http://kahini.org/community/community.html)

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