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Pig Brother - Ademir Assunção

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O RUGIDO ESQUIZO DOS MOTORES


O Mendigo Kamaiurá atravessa lentamente a rua
embaixo do Minhocão.
O sinal está fechado para ele.
Buzinas esgoelam, motores rosnam,
vendedores de planos de saúde suam e bufam.
A garganta congestionada
do shopping Paradise
cospe pastilhas de urina
na cara de dois mil clones de Pedro Bial.
Um ônibus atropela uma barata.

Demiurgo bêbado, doente, esfarrapado
e fedendo a merda,
o Mendigo Kamaiurá desenha gestos insanos no ar,
indiferente ao rugido dos automóveis.

Lili Maconha observa a cena pela janela
do Trem Fantasma.
Tatua mais uma cicatriz no antebraço.
Com a gilete afiada do desespero.



O FANTASMA DA TORRE GÊMEA


Ainda havia deuses naquela época,
silvos de sereia,
fluxos de consciência, regressos,
planos de fuga.
Mas os relógios não marcam mais o ontem
— marcam a pele azul-praga dos mortos,
tatuagens fósseis nas paredes de cascalho.

Os relógios enlouqueceram,
perderam dentes, cabelos e ponteiros
& agora se lançam em caravana
à Terra do Quando, do Onde,
do Nunca Mais.
Caravanas terroristas que anulam o instante.
Bombas de fragmentação.

Homem de Aço escreve arabescos
nas páginas de um livro
que ninguém vai ler, esmaga a memória
com a ponta do polegar.
Tudo é farelo. Tudo é névoa.
Tudo é nada neste elevador giratório
em perpétua escalada até o topo da Torre Gêmea
— perna amputada que ainda lateja.

O clima está instável. Mister Morfina
observa o sangue subindo na ampola.

Holofotes vasculham o céu de madeira.




PAISAGEM DE ACASOS


Sete raios racham a cúpula de madeira.
Sete chineses copulam
antes dos rituais de enforcamento.
Sete hidrantes atacam skatistas
com golpes mortais de kung fu
na penumbra do Largo do Arouche.

Madame Buraco Negro veste seu capuz de veludo
e mergulha no lago escuro da madrugada,
engolindo homens e peixes coloridos
nos fundos do night club Paradiso.

Letreiros de neon anunciam orgias psicóticas.
Casais japoneses tomam chá
e assistem programas de telecatch
nos inferninhos da Liberdade.
A noite pulsa transes de trance music,
gases escapam pelas bocas de lobo,
viciados em heroína uivam nos moquifos
em volta da praça Roosevelt,
esperando na fila a dose de delírio
prometida pelo profeta boliviano.

Não há ofensas pessoais nem gestos passionais
nos dados lançados ao acaso
no fundo de um naufrágio.
Apenas uma paisagem em frenético movimento
e árvores imóveis ante a falta de vento.

Madame Buraco Negro ainda não sabe,
mas está sob a alça de mira.



RITUAL SINISTRO NA BOCADA


Cães ladram sob o véu escuro da Noite Drogada.
Cara de Bode gira o tambor e encosta o dedo no gatilho.
Debaixo da máscara negra
o semblante é ainda mais pavoroso.
Praças cobertas de entulho, ratos voadores,
baratas trapezistas, tropas de escorpiões.
Os olhos arregalados no breu do beco
miram a face do terror.

A primeira bala atravessa o joelho,
esmigalha ossos, ligamentos, músculos, meniscos,
membranas e cartilagens.
A segunda arrebenta a mandíbula — cápsulas metálicas
ferroando por dentro da carne.
Pneus velhos amontoados ao lado do corpo em agonia
estão prontos para o riscar de fósforos.

Justiceiros mascarados encenam o ritual
com pantomima sinistra — bocas retorcidas,
línguas de lagarto, risos de escárnio,
olhos mais frios que navalha.
A lei do cão vigora: olho por olho,
unha incinerada, líquido viscoso.
Não há clemência no espetáculo homicida.

O pancadão eletrônico abafa os gritos
na bocada de São Miguel.



PUPILA NEGRA NO ESPELHO DO CINE PORNÔ


As paredes do apartamento estão rachadas,
ranhuras fundas na pele de amianto,
cicatrizes que não fecham,
hematomas azulados e marcas de agulhas
por todo o braço.

Cortinas em farrapos acenam para a brisa seca.
Restos de pizza, seringas descartáveis
e ratos em fuga
obstruem a passagem das horas.
Vagões de metrô se atiram em alta velocidade
rumo aos abismos da Penha.
O sol é uma grande cabeça vermelha,
arrastada pela enxurrada
que açoita as pilastras do Minhocão.

A Noite Drogada se contorce como uma loba
atingida por estilhaços de lâmpadas fosforescentes.
Mister Morfina consulta o relógio de pulso,
cujos ponteiros não se movimentam:
apenas um velho hábito
que ainda desperta sorrisos de escárnio.

Lili Maconha contempla a própria pupila negra
no espelho do cine pornô.

O jogo de cartas do Trapaceiro Divino
não sinaliza nenhuma abertura de portas.

Não há epifanias
na paisagem de escombros.




O JOGO
(sexto monólogo interior de Lili Maconha)

Ela virá esta noite, com seu casaco felpudo.
Ela trará seus ganchos. Ela picotará minha carne.
Ela arrancará meu cérebro.

Ela virá esta noite e eu estarei à espera.

O tabuleiro de xadrez está preparado em cima da mesa.

A rainha louca, o rei deposto, o bispo trapaceiro,
o cavalo de oito patas. Todos aguardam a visita.

Oferecerei cigarros e folhas de chá.
Abrirei as janelas para que Ela contemple os escombros.
Deixarei a fumaça penetrar em cada canto da casa.

Todos sabem o final do jogo.
Só não se sabe qual será a cartada final.



TURBULÊNCIA DE NERVOS
(sétimo monólogo interior de Lili Maconha)

Arrancaram a alma das palavras.
Esfolaram a epiderme, trituram a carne e moeram os ossos,
até esvaziarem cada camada de sentido.
Ela virá esta noite.
Carcaças corroídas pelo ácido monetário,
sílabas e fonemas são apenas fantasmas,
sem significado algum.
Ela virá. A cadela de casaco felpudo, escuro e grosso.
Há letreiros luminosos nas fachadas dos edifícios,
mas eles não dizem nada.
Tudo está a venda. Tudo é ruína. Tudo é naufrágio
e turbulência de nervos.
Ela virá e eu a estarei esperando.
Peixes agonizam entre os entulhos.
Torneiras despejam água fétida sobre pilhas de pratos.
Os corredores das universidades estão cheios de zumbis.
0 38 está engatilhado.
Os últimos poetas se enforcaram em galhos de bétulas de ferro.


Ilustrações : Gilad Benari



Ademir Assunção é autor dos livros Até nenhum lugar (Patuá, 2015) e Pig Brother (Patuá, 2015) e de LSD Nô (1ª Edição - Editora Iluminuras, 2014 e 2ª Edição comemorativa  de 20 anos - Editora Patuá e Selo Demônio Negro, 2014), ADEMIR ASSUNÇÃO é poeta e jornalista. Publicou livros de poesia, ficção e jornalismo, como A Máquina Peluda (1997), Zona Branca (2001) ,Adorável Criatura Frankenstein (2003), Faróis no Caos (2012) e A Voz do Ventríloquo (2012) – Prêmio Jabuti de poesia. Integrou diversas antologias publicadas no Brasil, Argentina, Peru, México e EUA, entre elas Geração 90 – Os Transgressores (2003),Roteiro da Poesia Brasileira – Anos 90 (2011) e Cuentos Brasileños Contemporáneos (2013). Tem poemas musicados e gravados por Itamar Assumpção, Edvaldo Santana e Madan. Gravou os cds de poesia e música Rebelião na Zona Fantasma (2005) e Viralatas de Córdoba (2013). Vive em São Paulo.

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