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Ilustração: Hengki Koentjoro |
A mesa branca, o marido da outra, era legítimo o caso, não pertencia aos folhetins. A mesa tinha pés de jacarandá escuro, muito bem talhados, era uma mesa antiga, cheia de história, feita por mãos escravas, bela, forte, digna e ao mesmo tempo casual. O tampo é que era branco, de mármore, feito também no passado, já apresentando pequenas rachaduras no presente, lascado na borda onde uma curva delicada e barroca se desenhara intacta.
A mesa ficava na cozinha na casa ampla, talvez abarrotada demais de objetos e móveis colecionados durante anos pela família, uma família interessante mas ao mesmo tempo dona de um ranço que a minava de baixo, como areia movediça onde se edifica uma construção fadada a envelhecer ou sobraçar. As novas gerações, as legiões de primos, irmãos, alegres e irreverentes, sentavam-se ao redor da mesa na sala principal, essa sim, enorme, imponente, gigantesca, presidida com mão de ferro de um lado pelo avô, do outro pela avó. Eram o melhor das elites, mas tinham um lado rude, quase provinciano, que vinha de sua arrogância e noção onipresente e ilusória da própria superioridade. Casos eram contados, sempre, espirituosos e repetidos como uma litania, casos que enalteciam as qualidades de originalidade, graça, força e excentricidade daquelas figuras e personalidades de idades diversas ligadas pelos laços do sangue. Havia, entretanto, na sua própria força, na nonchalance, uma fraqueza, eram espíritos debilitados por um excesso de auto-complacência, nem tanto pessoal mas em relação ao clã, ao seu poder, permanência, imutabilidade. Não percebiam que repetiam uma lenda na qual nem eles acreditavam mais. Mas sua graça, seu charme, a consciência delicada e jocosa de sua decadência, faziam daquele grupo de parentes seres admiráveis, encantadores e apaixonantes. Embora se pudesse prever o fim, a evanescência da beleza de cada um deles, a própria angústia escavando no rosto olheiras mais permanentes, mudando as feições, depositando adiposidade em seus corpos esbeltos, rareando os cabelos devido às crises nervosas, endurecendo a fraqueza sem transformá-la em força ou plasticidade.
Mas isso tudo apenas se insinuava na época em que, na saleta adjacente à cozinha faziam-se as refeições diurnas, o café da manhã e os almoços menos formais. Ali ficava, do lado de fora, além das portas altas com venezianas de ripa de madeira finas na parte superior, a mesa branca, onde ela e ele se sentavam quando a mesa ficava cheia demais dos ‘adultos’. Ou mesmo depois das refeições terminadas, especialmente o café da manhã, conversando em meio às plantas, ao sol, olhando para a alegre paisagem do morro que se estendia atrás da casa, suas borboletas, pássaros, os galhos nodosos e úmidos das árvores, as folhas espessas verde-escuro, o som dos pequenos riachos e quedas d’água que desciam pela encosta pedregosa. A rachadura no mármore, mais espessa e funda que uma veia fina num braço muito pálido, já se encontrava lá, assim como a lasca que interrompia a generosa mas discreta curva barroca. Ao lado da mesa nos sentávamos, conversando sobre coisas que não me lembro, nada profundo. Éramos quase, apenas, duas crianças. Ao nosso redor, a mata, o morro, a proximidade dos empregados trabalhando na cozinha ou pegando alguma coisa da dispensa ou apenas atravessando o jardim para ir na direção de um outro cômodo da casa, estávamos distraídos, havia tanta vida pela frente, não havia nem ao menos a consciência de que aqueles momentos podiam, um dia, se transformar em algo tão grave como lembranças, memórias, estávamos ocupados em viver. Nossa existência era ínfima, vivida sob o guarda-chuva agradavelmente terrível e protetor dos mais velhos, que mal sabíamos que nos protegiam com a sombra do seus fracassos pessoais ou das vitórias, das escolhas e das amarguras, das desilusões. Eu vinha de fora, uma estranha, aceita provisoriamente no seio daquela família e daquela casa que me cobravam ser uma convidada visitante, platéia, admiradora, beneficiada e necessária.
A mesa fora da casa, migalhas de pão, o jornal que só passamos a ler quando ‘crescidos’, os gatos passando entre nossas pernas, teu sorriso luminoso mas já cansado no rosto sempre um pouco pálido, você dormia até muito tarde no quarto sobre a mansarda com teus primos, eu e Nora dormíamos na outra ala da casa mas de tarde eu visitava teu quarto e ficávamos jogando gamão sobre a colcha de chenile ou conversando sobre expedições, aparições e crueldades praticadas contra animais, que talvez tivéssemos vontade de fazer e nos horrorizavam. E então durante as férias viajávamos para lugares diferentes, e quando voltávamos, depois de meses, tudo retomava de onde havia parado, ainda que no início ficássemos mais tímidos e arredios, cerimoniosos quase, nossos rostos, corpos, mãos como que pertencendo a estranhos, nossa antiga intimidade, consolidada pela convivência, subitamente exposta, desnaturalizada, exigindo novos dias de repetição, os mesmos rituais e hábitos, para se reinstalar.
Tardes de tédio, noites de promessa, andávamos pelos cômodos conhecidos da imensa casa, explorando, ou esperávamos no saguão imponente, ladeado de estátuas familiares, a hora do jantar para convidados, a luz dos abajures lançando um banho amarelado por sobre o piano e as fotografias emolduradas. Mais uma vez o fora da casa era o local menos opressivo, o saguão junto ao jardim, por onde passavam os que chegavam depois de terem atravessado o portão e cruzado as alamedas ajardinadas. Uma vez na mesa comprida, de banquetes, tudo parecia risível, os empregados cujas vozes escutávamos na cozinha, e com quem convivíamos, vestidos agora em uniformes e luvas e servindo à francesa, o olhar baixo, e o grande ritual de pompa um tanto rude, herança de fazendas. E nas manhãs seguintes, as pilhas de louças sendo guardadas, e nós comendo goiabas, as cascas cortadas como uma perfeita tira inteira e sem fissuras repousavam sobre a mesa, tua habilidade, como se a fruta pudesse ser perfeitamente reconstituída a qualquer minuto, mesmo depois de cortada.
Quando a vida nos separou nem percebemos, ocupados que estávamos com a vida, o terror e a delícia de tornarmo-nos adultos, mas algo nas tardes crepusculares - sempre quando me lembro daquele período estamos com os demais e é noite - continha uma certa covardia, um deixar acontecer, um receio de estabelecer nossa intimidade para além dos muros que até então a abrigavam sem esforço.
Fomos nos encontrar muitos anos depois, ocasionalmente, já ambos casados e nossos filhos nem ao menos repetiram minimamente os gestos ou olhares que trazíamos nas lembranças ou experimentaram afinidade qualquer, afinal eram outros e não nós, entediados com as histórias daquele passado dos quais tinham um vago ciúme e pelo qual sentiam desinteresse. Ficaram agarrados à nossas pernas, olhando-se com hostilidade e comportando-se de modo propositalmente tacanho enquanto tentávamos encetar frases, conferir olhares, nos acostumar de novo com nossas novas aparências físicas, mais do que com os relatos da vida, trabalho, atividades, para ver se havíamos nos transformado em pessoas interessantes, ou se algum sinal de fracasso, tristeza, dispersão, se anunciava em olhos reticentes, sorrisos pela metade, de pé, interrompendo brevemente a passagem de quem saía ou chegava nas escadas do restaurante com vista panorâmica e cozinha francesa. Você havia se casado com uma prima, que costumava brincar comigo, era tudo como se imaginava que fosse ser, era como se estivesse sempre planejado, que não se saísse nunca dos limites da casa.
Cheguei a sonhar com você, mas soube que não era você logo depois, quando me separei do meu marido e passei a sonhar com ele, que já não vivia comigo, e perceber que quando se sonha com alguém desse jeito é consigo mesmo que se sonha. A pessoa sonhada se dilui, se agarra à massa opaca do inconsciente, das imagens noturnas, perdendo a autonomia, passando a ser apenas símbolo, personificação, encarnação de conflitos, desejos, angústias do sonhador. Nem mais identidade separada tem; o pai, o irmão, mesclam-se ao amigo enterrado no passado, constituindo monstros híbridos, artificialmente completos, ou então desdobrando-se, ao longo dos enredos oníricos, sem nenhuma coerência, mudando de rosto, de corpo, voz e mãos. Você, então, junto com o meu marido, foi jogado nessa massa intemporal, transformando-se em mim e acentuando desse modo minha solidão, meu isolamento num mundo formado por mim, vivido por mim e para mim.
Num dia imprevisível, encontramo-nos de novo, por acaso, dessa vez sozinhos, e então o verdadeiramente inesperado aconteceu. Sentamo-nos numa mesa, ao cair da tarde, de um restaurante despretensioso perto da pequena enseada, do mar. E ali reatamos sem dificuldade, como se nem um ano tivesse se passado, nossa antiga intimidade quase pueril, descomplicada de assuntos, superfície apenas como a casca perfeita da goiaba cortada formando uma tira impossível de romper, cortar, que reconstituía a fruta inteira mesmo se faltava o recheio, o qual já havíamos comido e portanto fazia parte de nós. E tornamo-nos amantes, mas era mais e menos do isso, era legítimo o caso, e como eu disse antes, nele não cabiam categorias de folhetim. O marido da outra, mas a mesa branca nos autorizava, tinha vindo conosco todos aqueles anos até pousar no pequeno restaurante à beira-mar, servir de suporte para nossas inocentes e sérias manhãs de companheirismo que nenhum outro sentimento na vida havia sobrepujado ou ofuscado, sequer.
Ana Teresa Jardim nasceu e mora no Rio de Janeiro. É autora de A Cidade em Fuga, No Fio da Noite e A Mesa Branca, que estão sendo relançados pela 7 Letras em 2014, assim como seu mais novo romance, Tanto tempo sem te ver. Em 2012, publicou o infanto-juvenil Sacopenapan pela editora RHJ. Fez parte da antologia Mais 30 Mulheres Que Estão Fazendo a Nova Literatura Brasileira, organizada por Luiz Ruffato em 200