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O Super-silva, um conto de Tadeu Sarmento

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O SUPER-SILVA

      Nunca acreditou mesmo no que lia nos avisos. Ou no que liam nos avisos para ele. Um Silva só acredita naquilo que quer. E aquele Sgravado em vermelho na camisa azul significava isso: Silva.
   Seu pai também era um Silva. As dádivas só se explicam pela hereditariedade. Também os poderes, as capacidades. E não a maneira como o mundo lhe avalia, isso é consolo. “O mundo precisa ser salvo”, afirmou Silva, “salvo por um homem como eu”.
    Só que um homem como ele poderia ser qualquer um. Seu velho pai, o escritor Vilas Silva da Silva, havia explicado tudo no clássico O Parentesco Silva. Era um homem bom, de voz tão demorada quanto a própria digestão; pacífico, sonolento, sutilmente frustrado. Queria ser lido, afinal de contas, o que nunca aconteceu. Por isso fumava muito: “os ossos do ofício são duros de quebrar quando os dentes são de leite” (O Parentesco Silva, página 134).
    Silva lembra do seu bondoso pai, enquanto passa o dedo sobre o relevo da insígnia da fantasia. Vai tentar vesti-la, embora saiba que talvez fique um pouco apertada. Afinal, já se passaram vinte anos desde aquele aniversário. De qualquer modo não ficará tão apertada. Silva não cresceu tanto assim: “contanto que não marque meus mamilos”, afirmou baixinho.
   Ou: “homens como eu crescem pouco”, Silva afirmou novamente. Então pensa nos livros do velho Vilas, verdadeiros manuais de civilidade para os tempos modernos. E a civilidade nos tempos modernos é quase um super heroísmo. O Parentesco Silva divide-se em cinco partes: a) O Amor não merece a maiúscula; b) Um Silva no supermercado dos sobrenomes distintos; c) Toda sorte é genealógica; d) O texto que não imprimi, tatuei e, e) O método Silva para casamento e hipnotismo.
    Quase pode imaginar vê-lo agora, sentado em sua escrivaninha, fendendo a noite com seus cornos de escritor, acendendo um cigarro atrás do outro, tossindo como um cão arrastando as patas pela areia sanitária dos gatos. Parecia contente em se dedicar apenas a si mesmo. Mas não estava. Queria o mundo. Mas o mundo só lhe dispensava desprezo.
     Silva ganhou a fantasia quando completou dez anos de idade. Deixou de lado a corneta e as botas do Capitão América para ficar só com ela. Sua mãe, a boa dona de casa Distinta Silva, leu o aviso na caixa e alertou: “vestir essa fantasia não habilita o menino a voar”. Mas havia seu pai, agora de chinelas, calvo, magro, enfadado, melancólico e sem gravata. Já era a doença. Seu pai não se importava com avisos. E Silva o ouvia se levantar de madrugada, em direção ao banheiro, tentando, sem sucesso, urinar. Algumas vezes o ouvia abrir a torneira para se inspirar, e nem assim. Mas admirava o pai, que se orgulhava de nunca ter feito o exame e que, portanto, fruía de sua doença como se o prazer estivesse em apanhar, não em bater.
    “Depois que morreu resolvi ser um herói para ele assim como foi para mim”, afirmou Silva, e por dois anos após a morte do pai vestiu a fantasia e tentou salvar o mundo. Só que sempre chegava atrasado aos acidentes, aos incêndios, aos afogamentos, aos crimes passionais, como se a voz da mãe o alertando sobre o aviso fosse para sempre um presságio de sua inutilidade.
    Não que não tivesse medo. A ausência de medo não é coragem, é ignorância. De qualquer forma nada de heroísmos, mas uma vida inteira apagada, ao lado de uma máquina fotocopiadora xerocando apostilas de concurso público e livros de aventura que jamais viveria.
    Mas isso foi antes. Agora se vê no espelho apenas com uma leve barriga de chopp decalcada. A fantasia entrou com dificuldade, mas entrou. A capa ainda lhe caía bem, apesar da sunga lhe entrando um pouco nas beiras e das botas que deixavam seus dedos dobrados. Na mesa da qual se levantou para abrir a janela repousava um inédito do seu pai, O Plebiscito Silva, que trazia o subtítulo Só a classe C goza dentro e uma importante reflexão sobre o que fazer para identificar um Silva na contagem de corpos de uma tragédia aérea.
    “Meus heróis não morreram de overdose, morreram de câncer de próstata”, afirmou Silva, saltando pela janela do oitavo andar direto para o estrelato. Durante o voo ainda teve tempo de sorrir, mas não sorriu.




Tadeu Sarmento nasceu no Recife em 1977. É autor dos livros Breves Fraturas Portáteis (Fina Flor Editora, 2005) e Paisagens com ideias fixas (Bartlebee, 2012). Associação Robert Walser para sósias anônimos (2015) é seu romance premiado pelo Prêmio Pernambuco de Literatura e publicado pela editora Cepe.

Imagem Bean Scot

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