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zonas de sombra e neblina, e a paisagem carioca em poemas inétidos de Antônio Carlos Secchin

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Parmigianino - Autorretrato em espelho convexo (1524)  







Autorretrato

Um poeta nunca sabe
onde sua voz termina,
se é dele  de fato a voz
que no seu nome se assina.
Nem sabe se a vida alheia
é seu pasto de rapina,
ou se o outro é quem lhe invade,
com a voragem  assassina.
Nenhum poeta conhece
esse  motor  que maquina
a explosão da coisa escrita
contra a crosta da rotina.
Entender inteiro o poeta
é bem malsinada sina:
quando o  supomos em cena,
já vai sumindo na esquina,
entrando na contramão
do que o bom-senso lhe ensina.
Por sob  a zona da sombra,
navega em meio à neblina,
ainda que  seja pequena
a poesia  que o ilumina.


“Explode em preto...”


Explode em preto a pele cósmica de uma estrela,
Arde em silêncio a pele grossa de uma  vela.
Negra é a língua que se enreda
Para um salto sem saber o que a espera.
Negra, negra língua,
Com seu gosto de esgoto e de quimera.
Língua que se desfaz, liquefeita,
Na cachaça trôpega dos bares da favela.
Língua que ao pó retorna, heroína
Celebrada na veia aberta  das vielas.
Botas que galopam  para o abismo,
Expulsando a pontapés a primavera.
Um fio de luz desmancha o frio.
Amanhece no  Rio de Janeiro.


***
 
Espelho no ateliê (de Lucien Freud), por David Dawson (2004)



Revejo a  luz gelada de manhãs perdidas
e os sonhos  que eu  mandei para o endereço errado.
Tanto azul me nauseia e nada se dissipa
em meio ao mangue seco onde estanquei  meu barco.
Muitas  sombras debatem-se à beira do quarto.
Fantasmas nos  lençóis da noite estreita e aflita
esgueiram seus  anzóis no meu silêncio farto  
de saber que eles são a única visita.
Imóveis no sofá, me contemplam ferozes
e cravam com desdém  as garras da rapina.
Espanto  o pó e a dor  que descem  dessas vozes
rolando sem parar  pela memória acima.
      O espelho só  me ensina  a ruína do desejo.
      Sei que é meu esse olhar em que eu não mais me vejo.



 
Uma prosa súbita

Se não for  para arder,
                                                      ser rosa no inverno de que serve?(Eugénio de Andrade)


  
Uma prosa súbita
para a rosa de neve:
às vezes é só um verso
onde a voz de Andrade ferve.
E perdura apesar do inverno
armado na paisagem:
o que há pouco era uma tarde
floriu, ferido em arte.

 



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Antonio Carlos Secchin nasceu no Rio de Janeiro em 10 de junho de 1952, depois de uma breve estada no Espírito Santo (seis ou sete anos) retornou a sua cidade natal e não mais a deixou. Doutor em Letras pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (1982). Professor de Literatura Brasileira das Universidades de Bordeaux, (1975-1979), Roma (1985), Rennes (1991), Mérida (1999), Nápoles (2007), Paris Sorbonne (2009) e da Faculdade de Letras da UFRJ, onde foi aprovado (1993), por unanimidade, com nota máxima, em concurso público para professor titular.

Participou da importante antologia 26 poetas hoje, de Heloísa Buarque de Hollanda, entre diversas antologias, e tem nove livros de poemas (A Ilha, Ária de Estação, Todos os ventos, entre outros), além de sete dedicados a crítica e ensaio, e uma novela. 

Sétimo ocupante da Cadeira nº 19 da Academia Brasileira de Letras, foi recebido em 6 de agosto de 2004 por Ivan Junqueira.
 


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