![]() | |||||
Parmigianino - Autorretrato em espelho convexo (1524) |
Autorretrato
Um poeta nunca sabe
onde sua voz termina,
se é dele de fato a voz
que no seu nome se assina.
Nem sabe se a vida alheia
é seu pasto de rapina,
ou se o outro é quem lhe invade,
com a voragem assassina.
Nenhum poeta conhece
esse motor que maquina
a explosão da coisa escrita
contra a crosta da rotina.
Entender inteiro o poeta
é bem malsinada sina:
quando o supomos em cena,
já vai sumindo na esquina,
entrando na contramão
do que o bom-senso lhe ensina.
Por sob a zona da sombra,
navega em meio à neblina,
ainda que seja pequena
a poesia que o ilumina.
“Explode em preto...”
Explode em preto a pele cósmica de uma estrela,
Arde em silêncio a pele grossa de uma vela.
Negra é a língua que se enreda
Para um salto sem saber o que a espera.
Negra, negra língua,
Com seu gosto de esgoto e de quimera.
Língua que se desfaz, liquefeita,
Na cachaça trôpega dos bares da favela.
Língua que ao pó retorna, heroína
Celebrada na veia aberta das vielas.
Botas que galopam para o abismo,
Expulsando a pontapés a primavera.
Um fio de luz desmancha o frio.
Amanhece no Rio de Janeiro.
***
Revejo a luz gelada de manhãs perdidas
e os sonhos que eu mandei para o endereço errado.
Tanto azul me nauseia e nada se dissipa
em meio ao mangue seco onde estanquei meu barco.
Muitas sombras debatem-se à beira do quarto.
Fantasmas nos lençóis da noite estreita e aflita
esgueiram seus anzóis no meu silêncio farto
de saber que eles são a única visita.
Imóveis no sofá, me contemplam ferozes
e cravam com desdém as garras da rapina.
Espanto o pó e a dor que descem dessas vozes
rolando sem parar pela memória acima.
O espelho só me ensina a ruína do desejo.
Sei que é meu esse olhar em que eu não mais me vejo.
Uma prosa súbita
Se não for para arder,
ser rosa no inverno de que serve?(Eugénio de Andrade)
Uma prosa súbita
para a rosa de neve:
às vezes é só um verso
onde a voz de Andrade ferve.
E perdura apesar do inverno
armado na paisagem:
o que há pouco era uma tarde
floriu, ferido em arte.
________________________________________
Antonio Carlos Secchin nasceu no Rio de Janeiro em 10 de junho de 1952, depois de uma breve estada no Espírito Santo (seis ou sete anos) retornou a sua cidade natal e não mais a deixou. Doutor em Letras pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (1982). Professor de Literatura Brasileira das Universidades de Bordeaux, (1975-1979), Roma (1985), Rennes (1991), Mérida (1999), Nápoles (2007), Paris Sorbonne (2009) e da Faculdade de Letras da UFRJ, onde foi aprovado (1993), por unanimidade, com nota máxima, em concurso público para professor titular.
Participou da importante antologia 26 poetas hoje, de Heloísa Buarque de Hollanda, entre diversas antologias, e tem nove livros de poemas (A Ilha, Ária de Estação, Todos os ventos, entre outros), além de sete dedicados a crítica e ensaio, e uma novela.
Sétimo ocupante da Cadeira nº 19 da Academia Brasileira de Letras, foi recebido em 6 de agosto de 2004 por Ivan Junqueira.