Quantcast
Channel: mallarmargens
Viewing all articles
Browse latest Browse all 5548

"(um pássaro, uma sombra, uma flor extraviada, um jornal com cadáveres na primeira página)"

$
0
0


apenas três estações

Conheço apenas três estações e não há
ano que não seja coxo – três estações
apenas: a da luz
prolongada, a da luz estiolada
e a do regresso do calor.
Retornam os dias e retornam
os poemas sobre os seus ciclos.
Olá, coração estragado
como um piano deixado ao sol e à chuva,
como uma aurora boreal
sobre a feiura dos arrabaldes.
A avenida mais imunda é o início
do que chamo de casa: uma fileira
de terrenos baldios com bichos mortos
apodrecendo entre o mato e as pedras;
torres emulando castelos de princesas
ou coqueiros de néon imitando praias
na entrada de motéis; carcaças de carros;
depósitos de materiais de construção
ao léu; o entardecer
regurgitado por máquinas fumarentas –
a luz crua, escassa, puída
que resseca narizes e gengivas
e arreganha caninos que sentem fome.
O meu reino é uma legião
de cavalos magros, de prostitutas
de braços como gravetos e de rapazes
aos quais a noite vêm
e deposita ovos escuros em seus peitos abertos.
Olá, inverno súbito nos estertores
de uma sexta-feira. Faz frio e o metal
das placas de trânsito e dos carros estacionados
é o fio de uma espada gelada
a separar entranhas e a torturar o tédio.
Por vezes chove e um bueiro
transborda e retornam à sarjeta
lixos e ratos. Por vezes
dorme-se se com o coração acariciado
por um sussurro brando, por uma garoa,
e instala-se a suspeita
de uma manhã, de um céu
lavado estendido sobre a infinitude
dos subúrbios arrasados.

autorretrato

Virando a esquina, diante
da loja de fachada adulterada
sem que eu percebesse, penso
que são as mesmas pessoas
de sempre atravessando a rua
e também o mesmo o lixo
acumulado na sarjeta: ainda restos
de comida, contas pagas a custo,
rascunhos de um poema abortado
e outros dejetos que um homem
faminto revira e nada encontra.


se o ano é coxo

Se o ano é coxo é natural
que seja um tempo de falhadas simetrias:
não regressarão as sombras
que partiram como se fossem aves
migradoras e a canícula
pontua todos os quadrantes.
Na estrada a paisagem é vermelha
e já não diferencio terra, ventos,
relva: tudo jaz encarnado
numa reverberação alucinada,
uma permanência insone e caduca
do tempo que sempre anuncia
o mesmo instante. Na cidade
as manhãs são sem orvalho,
às vezes gélidas, sempre imundas;
lavouras inteiras caem do céu
como num inverno negro – neve
carbonizada ontem e hoje.
Sei que aqui já estive, que para cá
sempre regresso – para este dia
que não sabe a que estação pertence:
quando é o tempo de colher
e o tempo de incendiar sempre
confundo e os frutos apodrecidos
caem sem que eu saiba 
se desperdiçados quando maduros
ou se frutificaram já envenenados.


o poema de amanhã

Tornou-se o poema de amanhã
uma conta a se pagar quando se têm
os bolsos vazios – uma dívida
mas não como a que a terra
tem para com as suas sementes,
não como a que os homens têm
perante uma violada sacralidade.
Se tenho irmãos, se caminhamos
juntos ignoro:
tornou-se o poeta de amanhã
mais solitário do que os assassinos.


autorretrato

Começo a enumerar tudo o que me parece sinal
da extinção: nos olhos a topografia da cidade
como era há vinte anos; a persistência
de certos gestos que os amigos reconhecem
como sintoma da doença que leva o meu nome
e se algo que voa (um pássaro, uma sombra,
uma flor extraviada, um jornal com cadáveres
na primeira página) por um momento
demora a submergir na imundície das águas
empoçadas é como se eu reconhecesse o vulto
de um daniel de há muito e no céu
a lua cheia renascida machuca o peito
aberto como se alguém viesse
e sobre a ferida instilasse um ácido
que queima tão fundo e arde
tão doído até que o coração - com sua doçura
acre - começa a cheirar como lenha
nos terrenos baldios logo depois da chuva.


o silêncio alcança

O silêncio me alcança como um cão
atropelado que, ganindo, coxeando
afasta-se depressa. Vira uma esquina
e o imenso deserto do tempo esvaziado
petrifica as minhas retinas.
Há uma faixa de sangue coagulado
no céu e abaixo as ruas sem viva alma
que as percorra: não há um único vulto
de gente ou de pássaro que frature
essa imobilidade de árvores calcinadas
ao meio-dia rouco, áspero,
refratário como uma pedra de fogo.
Ainda amanhã, nas galerias da estação
rodoviária, eu no ônibus, sonolento,
olhando pela janela, para a irisada
e estreita faixa de sol onde alguns homens
fumam como numa comunidade de leprosos:
sem pressa, cada tragada abjeta
como o ar que se respira.
Eu os vejo pela janela do ônibus.
Eles veem o meu rosto dissolvido
nos embaciados reflexos do dia
na vidraça da janela e então
o silêncio - não mais que um hiato –
nos alcança, talvez, como a lava
e as cinzas alcançaram Pompeia.


***


Daniel Francoy (35 anos), brasileiro. Em Portugal, estreou em carreira solo com o livro de poemas Em cidade estranha/Retratos de mulheres (Editora Artefacto, 2010). Também participou de diversas coletâneas, tais como o primeiro número da Revista Agio (Editora Artefacto, 2011) e a antologia de poemas Mixtape (doladoesquerdo, 2013). Já colaborou com o site Enfermaria 6 e participou da coletânea Caderno 2 (Fyodor Books, 2014). No Brasil, recentemente participou da revista virtual Parênteses. Mantém o blog "O céu vazio" (www.oceuvazio.com).

Viewing all articles
Browse latest Browse all 5548