Quantcast
Channel: mallarmargens
Viewing all articles
Browse latest Browse all 5548

Registro para calendário de urgências - Carina Carvalho

$
0
0



 sim, a ventania é sempre muita.

pensava encontrar força no mar revolto,
porque mesmo a areia fina corre forte, é dona de feridas delicadas,
porque as árvores mantinham-se fincadas,
porque os pássaros tentavam voar contra
etc.
e a pele ali dura
se forjando dura
como os cascos de um cavalo
pedindo ajuda debaixo de sol bruto.

[meu bem, isto não parece pedido de ajuda? está claro que é pedido de ajuda?]

o problema é sempre a espera não caber nas barcas.
veja bem: eu me jogo no mar com âncora e tudo,
sem resposta e bastante sozinha,
naquele mar revolto de que falei.
que é movimento suficiente para mostrar força
que faça onda nas ondas.


é triste, mas lá debaixo nunca sei dos pássaros.



*
aparentemente foi numa manhã.

você falava:
que chuchu nos restaurantes nunca tem gosto,
que as árvores estão florindo na época errada,
de livros atrasados na biblioteca,
que até queria e planejou, mas sobre isso
não fez nada.

eu falaria:
sobre algum assunto sóbrio,
pensando (na verdade)
em amassos, versos, metrô lotado,
o que me acontece nas tardes,
pensando em declarações completas
ou resquícios.

no meio da fala, lançaria um feitiço
pra gravar com mão firme no ar
o traço dos planos suspensos em uma semana.

e por falar em sentimentos controversos,
a lua sorri num risco fininho de deboche
como quem chega inocente e sem hora
porque está sempre do lado avesso.
um lapso de tempo é coisa que se mastiga
pouco, matéria pra diluir em minutos:
dos sonhos rompe a coragem, deixa vislumbres

ou nem isso.


diagnóstico pra
muito açúcar no sangue
deve ser falta de sal na pele.

você alguma vez teve as palavras travando
com tua boca tomada de praia?
todas.

a água entrando até o labirinto,
ficando lá.
(você segurando)
molhando os dias, mofando tudo
(minha cabeça é de mar)
e indo fluido.

mas, ao contrário do que parece,
você está só em um barquinho pobre
na superfície.
a vontade é ir, e longe!,
mergulhar, ficar lá.

até sentir o sal no sangue.
até o momento em que
não haja separação.
teu corpo terreno/teu corpo de mar.

e então mergulhar.
ficar lá.



registro para calendário de urgências

há algumas coisas que não é possível conceber
e há palavras

não paro de me comover com a comoção das pessoas com a lua

vai ver não quero parar

viver pode ser difícil, principalmente - você vai saber do que estou falando

- principalmente se estiver preso nisso - e se tiver a consciência
você subitamente para e diz, voltando pra casa, depois de estourar de álcool e felicidade,
aí diz: "estou só"

outro dia eu li uns versos que pareciam você e o mar

lembrei de seu nome e achei que ia pular

imagina só poder ordenar: tragam um dia leve! na bandeja, com fruta fresca,

pão e suco com muito bagaço porque é direito querer 
do sumo as coisas puríssimas

receber um e-mail que fala 

de como o inverno chegou ou de como as coisas em um domingo são
e quando ler tudo, sorrir violentamente. nutrir na entranha uma alegria
que agrida o medo e interrompa coisas terríveis
e interrompa coisas pequenas como fincar a unha na pele das costas

eu faço minúsculas feridas, estrelas vermelhas de ânsia e fúria


reparo no tamanho da sua gengiva enquanto conta algo que pedi, 

reparo que também não conto coisas,
nem vou
uma colega reparava no colo das pessoas enquanto havia conversa,
nos ossos, o início do peito
a gente olhando reto ela de olhos baixos,
aí você constrange

eu não reparo. tenho pressa

não paro os dias e eles me passam. remédio tudo, sou feito vulto, 
assusto, bato janelas
e aparo arestas.



*
da cama mesmo, toco no chão o resto de maçã roída minutos atrás. fria. úmida. 
um sustento de carrretel para o sumo... e foi tão doce! fuji.

.
recolho os brincos azuis e redondos, para hoje não ter globos nas orelhas. é precaução de não saber onde andam pendurados os sonhos que não tenho tido.

.
fez frio na volta, de um vento que naturalmente não toca muitos neste dia da semana em que um laço fica suspenso nos ares sujeito à disponibilidade dos desejos. por vezes parece frágil, de modo que não se nota cor. é como o azul dos brincos ou alguma outra.

.
importam-me as crises. fazem que corte minhas unhas dos pés e todas as carnes que as circundem.
nisso, na cama mesmo, o sangue toca o lençol. quente. úmido.

.
é madrugada e a chaleira apita mais alto. o tom agudo diz pela cozinha que é na chama da cor que já sabemos que arde todo tipo de toque previsto.
diz que ali eu fervo, para buscar cura, minhas próprias doenças.






Carina Carvalho nasceu em 1989, em São Paulo. É formada em Letras e com elas trabalha. Em 2013 lançou seu primeiro livro de poemas, Marambaia (Editora Patuá). Participa da antologia poética É que os hussardos chegam hoje (Editora Patuá, 2014), da Revista DiVersos (editada e publicada em Portugal, 2014) e foi uma das selecionadas na categoria de poesia do II Prêmio Ufes de Literatura (Edufes, 2014). Há textos seus também em algumas revistas online. Nos últimos tempos tem brigado com a poesia, mas, quando fazem as pazes, quase sempre acontece em desastresliricos.blogspot.com.

Viewing all articles
Browse latest Browse all 5548