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ROBERTO DUTRA JR. RESENHA "SEGREDARIA", DE CEL BENTIN

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    Segredaria, de Cel Bentin (Patuá, 2014), é certamente uma estréia poética muito bem ensaiada de um autor fascinado pelo texto. Em sua quase totalidade de textos que cercam o fascínio pela linguagem, encontram-se recursos originais e soluções gráficas que refrescam o aparentemente cansado panorama poético. Pequenos detalhes que apenas um entusiasta do texto e um poeta com respeito pela linguagem seria capaz de tentar, sem medo de rótulos.
    Chama logo a atenção os títulos dos seus poemas. Os títulos foram inscritos ao fim do poema, isto é, no pé da página. Inicialmente esta seria uma despropositada inversão, porém, o recurso tornou-se um ludus divertido e cativante ao longo do livro. O estranhamento inicial, de encontrar o título ao fim do poema, logo é substituído por uma sensação de curiosidade, pois o leitor passa a absorver o texto para só depois pontuar seu entendimento com uma imagem que pode encerrar as demais, ou mudar a linha de pensamento inicial. O título torna-se um fio condutor, é a imagem principal que se apreende na leitura de um poema. O texto do poema pode estar contido nessa imagem inicial, ou ser um desdobramento desta imagem. Inverter esse jogo é inverter as expectativas de leitura e lembrar a todos nós que ainda é possível escrever um poema que contenha alguma transgressão em sua concepção.

    Segredaria, entretanto, não está apoiado apenas neste simples recurso para se sustentar como uma boa estreia de Cel Bentin. Eu aqui uso a palavra “simples” para me referir à estratégia lúdica do título ao fim da página, sem nenhum demérito que possa estar imbuído na palavra. O apreciador de arte experiente bem sabe que é na simplicidade das opções que encontramos a renovação de ciclos estagnados em qualquer das artes. Deixando claro esse ponto, Segredaria se sustém pela prática da poesia feita com consciência. Além de um exercício de apenas enumerar prosaicamente imagens que podem conter maior ou menor efeito na mente do leitor. A figura central é um eu-lírico poeta que passa por muitos dos textos e deixa sua visão do mundo que o cerca. A palavra, a linguagem, a fala e suas impressões são elementos recorrentes que marcam uma característica metalinguística em quase todo o livro. Elementos que configuram a noite, a boemia, as cidades que marcaram o poeta, saraus e o corpo impregnado da palavra também caminham junto com a construção de imagens do poeta. Cel Bentin constrói um texto poético sem se descuidar da importância do ritmo e do som de cada palavra pontuar o processo de leitura. Como no poema “Prefácio”: “Ouvir toda palavra / primeiro / com os olhos. // Descobrir / seu volume / em silêncio. // Tatear seu som / manuscrito aceso / no peito. // Só depois, / com o sentido nas mãos, / deixar verter pela boca...” Além do jogo, seu texto convida para o prazer da leitura, da palavra sorvida e do som descoberto durante a fala.

    Duas outras características em Segredaria acrescentam uma relevância literária à produção de Cel Bentin. O poema “Ciranda neguinha”, que apresenta uma estrutura espacial circular, com as palavras compondo um único verso, percorrendo o diâmetro de sua circunferência. Sua leitura pode ser feita a partir de qualquer palavra inicial e continua; moto contínuo, ao longo de uma leitura que pode durar o tempo que o leitor quiser, pois sempre o final do verso encontra-se com seu atribuído início. Uma oportunidade do leitor interferir direta e democraticamente com a obra do autor. As escolhas para a leitura são do leitor, logo as chaves interpretativas também lhe pertencem e o domínio da fruição aponta para a invisibilidade o autor, posto que a ciranda, é sempre outra e infinita.

    A segunda característica que também chama a atenção em Segredaria é a presença de textos híbridos. Poemas como “Sarau no bar”, “Prenda dos portos”, “Cordial”, “Sortilégio” e outros, combinam bem a escrita versificada entremeada por trechos de prosa sem perder a força do seu conteúdo imagético nem rítmico. É gratificante de tempos em tempos conhecer um autor que não se intimida a fórmulas para expressar expectativas. Parece que Cel Bentin não tem medo de rótulos e preocupa-se em construir um texto pautado pela coesão de sentidos, não importando qual caminho seja preciso na página para encontrar a realização. Riscos assumidos e levados à cabo com responsabilidade e com belos resultados.

    Considerando o que até agora foi exposto de Segredaria, a profusão de citações de outros autores quase ofusca os pontos mais criativos do livro. Acredito que todos somos reféns de nossas influências. Trazê-las à tona é uma forma orgulhosa de homenagear e marcar para todos a leitura de um mestre no ofício do verso. Entretanto, impregnar sua obra com citações que remetem o leitor a outros autores e outras leituras (parei de contar depois da primeira dezena...) pode resultar em um efeito reverso. Autores mais experientes, consagrados pela academia, história literária, ou gosto popular, tornam-se ícones que automaticamente remetem nossas expectativas interpretativas para o citado. Logo, seja por insegurança ou vaidade, pode-se ter o leitor distraído do foco principal, que é a obra nova de um autor estreante.Para leitores mais experientes de poesia o resultado pode ser apenas cansativo, para iniciantes, uma alegoria sem função.





    Há ainda muito a se descobrir nas páginas de Segredaria, mas resenhas longas são cansativos prefácios que não aconteceram, e não há necessidade disso para concluir esta. Segredaria, de Cel Bentin, é uma leitura que reserva muitas possibilidades, com um valor de uma obra aberta. Versos conscientes, bela prosa, que deixam grandes esperanças e iguais expectativas para o que quer que o autor esteja preparando para consolidar seu caminho como escritor.


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Autor do livro de poemas Segredaria (Patuá)Cel Bentin é paulistano. Integrou a Antologia do 1º Prêmio Cassiano Nunes – Concurso Nacional de Poesias (Universidade de Brasília – UnB), o flipbook Asfalto (Publicações Iara) e meia dúzia de sites/blogs e zines. Revisa textos por ofício, como quem ouve a voz que escreve. Gosta de teatro e cinema; prefere o cajón à poltrona. Sente que palavra é bicho mais denso do que as gramáticas pregam e a tabela periódica imagina. Desconfia do querer dizer: desafia e firma fé é no (se) ouvir falar que a intimidade de quem lê ampara, provoca ou renega. Acredita em profundidades que apontam para o alto. Mais jamais confessa (e anuncia): só segreda.

LEIA POEMAS DO AUTOR AQUI.




Roberto Dutra Jr. é um neurótico social como todo brasileiro de cidade grande. Adora literatura, mas as palavras não fazem mais sentido. Mestre em Letras, tem um livro publicado e diversos artigos de caráter acadêmico e crítico publicados. Foi editor de revista acadêmica, contribuiu para jornais e revistas literárias no Rio de Janeiro  e tem um seríssimo flerte com a música. Adora gatos e poemas, que movem-se na penumbra e nunca revelam-se inteiramente. Leia mais textos do autor aqui.




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