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Um conto de Ernane Catroli

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Ilustração: Alex/deviantART


Vigília


Apagadas nas sombras, as últimas casas do beco pareciam ainda mais velhas, mais sujas. Um rumor vivo, de vozes, vazava das janelas entreabertas. Perto, a noite. Aquela, a casa. E os restos de frases dos operários que retornavam do trabalho. Só muito tempo depois – sob a pouca claridade da luminária antiga - a figura pesada à porta do sobrado emerge solta, deslocada do que o rodeia. Buddy. Seu rosto que se volta na minha direção. Um estremecimento. E nem me apaziguava a certeza de que não podia me ver. Que os olhos. Iguais os seus olhos. Os olhos de um furor demoníaco. 
Que houve aquele momento: sem perdão, sem igualdade de defesa. Súbito, o negror da dor.  Este o lado do meu peito. Depois, o corpo dobrado nos joelhos. Os ruídos, um grito: o meu próprio grito. Vultos esfumados e o vermelho brilhante dos coágulos de sangue nas pedras rugosas do calçamento. Uma nuvem fúnebre, de desespero e indignação. Um desassossego. O que pulsa em mim. Estou no miolo deste mundo morto.  
                                     E quando retorno em direção à avenida que corta o bairro antigo é alta madrugada. Dobro a primeira esquina à esquerda e me junto aos que já me aguardam na rua vazia. Um cortejo. Uma legião sôfrega. Como se viessem de longe. Ou mesmo de muito perto. Mas coroados de fé. A fé dos peregrinos.



                                    

Ernane Catroli - (Sant'Anna de Cataguases - MG -1953). Funcionário público. Reside no Rio de Janeiro. Publica em alguns blogs destinados à cultura.

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