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2 POEMAS DE ANDRÉ CARAMURU AUBERT

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o sentido da vida


viver entre os ponteiros do relógio.
entre as datas no calendário. viver entre
as paredes, os corredores e as baias,
viver entre os passageiros do metrô.
viver entre o holerite que refresca
e a mulher que queima. entre cobrar e
ser cobrado. viver apertado. viver
correndo, galopando, marchando. viver
em ordem unida. viver entre o almoço e
o jantar. viver para mijar. viver entre a sexta
e a segunda. entre o sábado na bicicleta e
o domingo na sogra. viver sem
pensar muito nisso tudo. viver entre
as faturas do cartão de crédito. entre
demitir e ser demitido. entre a
carranca do chefe e a sedução da
colega. viver sonhando em
conhecer alguém no cafezinho. entre comer
e ser comido. entre a gaveta das meias e a das
cuecas. viver entre a manhã e a tarde. entre
a cagada da manhã e a cagada da tarde. entre
a garota de salto alto e a de cabelo pintado.
viver entre a happy hour e o despertar
sonolento. entre o chuveiro e a toalha.
olhar para o espelho embaçado
do banheiro. entre a lâmina de
barbear e o rosto escanhoado. viver
entre o chopp e a porção de fritas.
entre a ramela do filho novo
e a urina do pai idoso. na
quarta-feira, feijoada: merda, merda,
merda. viver loucas emoções no
resort. margarita, sex on the beach,
tequila. viver a vida louca. a vida
louca. beber energéticos. viver entre
as tigelas com perdigotos e a balança
na qual se pesa o almoço. entre os duzentos
canais da tela plana, de led hd, da tv. viver
as cores da tv. postar, curtir, compartilhar.
sonhar, sonhar, sonhar. viver
entre o hall de entrada e a maçaneta,
viver entre o carro novo e a moto usada.
entre o queijo branco e a goiabada
entre o noivado da irmã
e o casamento da cunhada.
viver entre as tetas da mãe e os peitos
da namorada. viver entre a chuva
e o sol, entre o sul e o norte,
a picanha e o corte, entre
o azar e a sorte. viver.
viver entre a vida e a morte.




um conto de natal


as paredes ainda eram as mesmas. e
os cacarecos da falecida. e o cristo dependurado.
e a chuva lá fora na noite quente ainda era
mesma, o som da tv era o mesmo som, ao
fundo, da tv nos natais, melancólico, tão
melancólico quanto deve ser melancólico
o inferno. e ele, como sempre, na cabeceira
da mesa. mas não como antes, importante:
agora ele era ignorado. e a balbúrdia em volta:
filhos, filhas, noras, cunhados, netos: ninguém
falando com ele, ele com aquele sorriso
difícil de dentadura, aqueles óculos que
deixam os olhos muito grandes, ignorado:
ninguém ouve o que ele tem a dizer, ele é como
um vaso. ele é tão ignorado quanto aquele cristo,
horroroso, da falecida, dependurado na parede.
ele tem vontade de se levantar e falar, bem alto, que
foda boa não era com a falecida, mas com as
outras, e de entrar em detalhes, detalhes sórdidos,
picantes, deliciosos, e de listar uma por uma,
pelo menos as de que se lembra, e
de chocar a todos: mas não: ele se contém, e
continua, com aquele sorriso difícil, de dentadura,
e aqueles óculos que aumentam os olhos, na
cabeceira da mesa, quieto, e ignorado: mas querendo,
querendo muito, muito profundamente, mandar todos,
todos eles, filhos, filhas, noras, cunhados e netos, tomar,
todos eles, no meio dos cus deles. todos eles. todos.




Foto: Diane Arbus


*    *    *





André Caramuru Aubert nasceu em São Paulo no longínquo ano de 1961. É historiador, editor e escritor. Já colaborou com publicações como O Estado de S. Paulo e Jornal do Brasil. Atualmente é colunista da revista Trip e colaborador do jornal Rascunho, para o qual mensalmente seleciona e traduz, entre seus preferidos, algum poeta estrangeiro. Publicou os romances A Vida nas MontanhasA Cultura dos Sambaquis e Cemitérios. Em agosto deve sair, pela editora Patuá, "Outubro/Dezembro", sair seu primeiro livro de poemas.




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