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5 poemas de Artur Ribeiro Cruz

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Ilustração: Hanan/deviantART


Despertar

Sono nosso de cada noite,
vem cumprir tua sanha.

Faz do dia leite
a ser sugado no seio
da sorte. Sono, sono,

temo-te como a um fio quente,
luz, a escorrer dos olhos
trêmulos, sal e sangue. Sono, sono,

unta os pontos da sutura,
cose o sonho, une os cimos
no céu da infância. Sono,

vem ungir-me
com sumo sagrado,
e me envolve,
sereno, sono, no
útero
eter-no
da
lembrança.



Gravitação

pelas paredes
deste escritório de inutilidades
escalam palavras,
sussurros tresloucados.
e, então, do teto
precipitam-se
suadas
em desespero,
que é vontade de ver.

sem o que dizer, na queda dizem:
quem nos salvará do suicídio?

antes que caiam num baque surdo ao chão, porém,
tentação de servir a quem as salvou,
uma pena, talvez ponta de areia,
vidro ou espelho,
mantém-nas suspensas,
constrói limbo de linotipos,
deixando-as livres, à revelia.

enquanto isso,
traças digerem
tranquilamente
as páginas de um velho livro.


Ilustração: Hanan/deviantART


Reencontro em rodízio   

Você convida fácil
Eu, convívio difícil
Você traz na boca um mausoléu
Eu arrasto tragos e estragos
Você pede suco adoçado com mel
Eu, pinga, limão e fel
Você estuda o passado e crê no futuro
Eu, ex-tudo, quase nada
Você fica muda e faz nada
Eu, desnudo, nidifico
Você sente frio

Eu me finjo forte horas a fio
Você olha profundo
Eu, óleo, presumo
Você presume
Eu, presunto e alho
Você bebe
Eu beijo
Você boqueja
Eu, mais uma de queijo
Você esbraveja
Eu, mais uma cerveja
Você chora
Eu, chorinho e samba
Você sai
Eu salgo o último pedaço de pizza
E vou-me embora sozinho



Pós-póstudo

Curvados, de toda busca por novidades,
contemplamos cabeças cruzarem
linhas imaginárias; das vaidades
recebermos louro e homenagem
pelo que melhor fingimos não ser velho.

Depois do póstudo ser passado,
sobrou-nos o ritmo do silêncio
(                                               )
Assombrou-nos a imagem sem sombra
e os pensadores do vácuo em pensamento.


Quisemos mudar tudo? Eu, mudo.



Arco-íris

Alheio ao léu, leio aquilo que há pra ler.
No paralelo, borro o pensamento
azul + amarelo. Em silêncio,
vejo o verde verme-alheio
parir A E I O de Rimbaud:
olhos, ômega pleno azul.

Lânguido aeroplano pousado na língua
decolar da lama ora pressinto
dizer que ama com barro e saliva
a consanguínea e precisa vogal
ao rogar sexo vocal
numa ilha de papilas-ninfas.

Anexo: parto vir-U-lento
Vírus, ânus, excremento,
vozes de milhões de oxiúros
por dentro — o centro — ecoam,
e escoam digeridos ônix, casulos
de borboleta: práticas atávicas escondidas
que enceram (erram) encerram

a matéria do não dito.
Artérias disto e daquilo
sangue pulsam consoante,
som que míngua enquanto canta
ária de primárias dores.

Anterior a cores, solfeja-se
um amor que apavora pavões,
que voa pela forma do tempo,
e pinta pela perpendicular
o elo branco do conhecimento.
Escrevo o que há pra escrever — semeio o céu.




Artur Ribeiro Cruz nasceu em Sertãozinho, interior de São Paulo, em 1981. Mudou-se para São José do Rio Preto para estudar Tradução na Universidade Estadual Paulista, onde também desenvolveu mestrado em Literaturas de Língua Portuguesa. É professor de linguagem na educação básica e no ensino superior. Dedica-se também ao estudo comparado entre literatura e cinema, área em que desenvolveu pesquisa conjunta, nos anos de 2002 e 2003, intitulada Cinema e literatura brasileira: problemas de transcodificação, interferência e recepção. Em 2009 publicou, em coautoria com Antônio Manoel dos Santos Silva, O cineasta e a margem do rio imaginário (Arte e Ciência Editora), resultado de estudo comparativo entre as obras de Nelson Pereira dos Santos e Guimarães Rosa. Os poemas aqui publicados fazem parte do Semanário do Corpo, publicado em junho de 2015 pela Editora Patuá.

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