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Cheiro de alma lavada - Tania Amares

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Ilustração: Daniel/deviantART


For Hecuba!

                                                          What's Hecuba to him, or he to Hecuba ?
W.Shakespeare, Hamlet, Act II scene 2
                                                                                                                             

Sempre gostei de estender roupa no varal.  Erguer os braços, levantar o rosto com o céu ao fundo, sentir a luz e o calor do sol impregnados com o cheiro da roupa limpa.  O espírito vive de sensações.
Há quem negue o fato ou prefira legar à alma um mundo sem cheiros ou calores. Não a minha, essa alma que respira em mim é diferente. Sente que nunca irá pisar em qualquer lado outro que não seja esse aqui, agora.
Alguns querem as suas eternamente limpas.  Não entendo pois a minha requer constantes lavagens, gosta de se sujar. Talvez o pó, essa aspereza de onde viemos, seja  responsável pelo anseio pela terra, pela vida da lama que seca em nós.  Sim, minha alma se suja e gosto de lavá-la sempre que está sol.
As roupas estendidas balançando são formas ao vento.  O movimento chama-me a atenção. A forma dos seres, suas habilidades diferentes. Roupa é um ser que seca.  Alguns outros, do mesmo tipo que secam, dispõem de linguagem. Um acaso,  lance de sorte, talvez.
Um dia senti-me muito próxima a uma cobra, ou melhor, uma salamandra.  Precisei escrever sobre o fato. Foi um encontro intrigante, contava então 43 anos, mas as palavras e idéias eram quase e ao mesmo tempo infantis e profundas.  Eu e ela conversando no pátio de um restaurante.
Perdi o caderno, o texto.  Lembro-me, no entanto, da angústia em meu peito diante da possível morte daquela alma. Tinha medo que as pessoas pisassem naquele pequeno ser que se movia estranhamente e eu acabara de descobrir. 
Dizia eu à salamandra para tomar cuidado com os sapatos enormes que andavam sem olhos por ali. De repente, sentindo-me na mesma condição e junto dela, vislumbrei as possibilidades do nosso atropelamento. Tentei explicar-lhe que nós, rastejantes, quase não somos percebidas. E se formos esmagadas, ninguém sentirá falta, o mundo seguirá acordando e dormindo entre manhãs e noites.
Enquanto eu falava (ou pensava),  cuidava para que não a atropelassem. Até então era para mim uma cobra, mas vi que tinha patas. O que era? Cobras têm patas? Bem, eu tenho patas ou pernas, se ela também, éramos primas. Depois desse dia, nunca mais a vi. Deve ter escolhido esconder-se entre as folhagens. Sem dúvida, é sempre melhor.
No dia em que a vi, esperava, pacientemente, por  uma palavra, do lado de fora de um restaurante. Sabia da mínima probabilidade, mas talvez. Talvez é forma escassa, é quase nada. Não, não chegou (o som que eu esperava ouvir). Apenas olhos passaram, olhares. Ali eu permaneço até hoje impressa em minha memória. Eu e ela, duas rastejantes.
Se agora sorrio, é porque percebo alguma ironia no destino. Ah! aproxima-se algo de melancolia. Saudade de outro tempo com menos medo. Bobagem minha,  devia saber que  é praticamente impossível sustentar a esperança pela palavra livre, mas ainda gosto de varais e do cheiro de alma lavada.



Tania Amares Bueno, psicóloga e educadora interessada pelos caminhos da linguagem. Escreve poemas e prosa desde 1999. Traços é uma publicação independente de poemas pelo site de editoração eletrônica ISSUU. Ultimamente, dedica-se à literatura infantil com temas específicos para um tempo de descobertas (infância). Publicado também pelo ISSUU o livro de poemas para crianças Coisias. Participou da coletânea Sobre Lagartas e Borboletas organizada por Adriana Aneli Costa Lagrasta, Chris Hermann, Adriane Garcia e Maria Balé a ser publicado eletronicamente pela TUBAP. Tem poemas publicados na Germina, Revista de Literatura e Arte e na Mallarmargens Revista de Poesia e Arte Contemporânea.

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