Quantcast
Channel: mallarmargens
Viewing all articles
Browse latest Browse all 5548

AINDA É AMOR - LILA MAIA

$
0
0
Ilustração: Chris Lamprianidis


FALA AMOROSA

Sem que me tivessem ensinado
retiro do teu peito as mãos espalmadas
arrumo meus seios em desalinho

Ainda que a loucura tenha nome
e punhais lutem dentro de mim
quero pôr os pés onde o sol brilha
como se branco fosse o caminho



AINDA É AMOR

O cheiro inteiro da noite nas paredes do quarto
Depois caminho pela casa
como se estivesse em todas as ruas

Este homem pesa sobre minhas pálpebras



Ilustração: Chris Lamprianidis


           O AMANTE
(Com o pensamento em Murilo Mendes)

O mundo começa nos pés de Ezequiel.
Depois vêm as mãos espalhando desejos
sobre aquele mar branco.
Ora é um navio atracado sobre as areias,
ora este menino chutando o vento.
E me comovem o ar puro de seus braços agitados
que não pedem socorro, só liberdade,
aquela anarquia eterna de línguas,
o mistério de cada audácia,
suas costas com poemas de bichos desconhecidos
seu intocável abismo de pássaros ou fantasmas.
          
Ele é sempre uma visitação.

Com Ezequiel não retorno ao lar
acendo sozinha as luzes da casa.



            UMA ORAÇÃO

Deus nunca vai me perdoar: não vou mais sofrer.
Um tigre salta por trás,
nenhum palavrão me vem à cabeça no primeiro ataque.
A salvação? Não rezar mais.

Aos poucos a beleza do corpo vai se encolhendo
o fraco respirar convertido em todos os pecados,
e as folhas preenchidas com poemas são filmes.

Meu melhor papel?
Ter dormido com cordeiros e anjos disfarçados.  



UMA CONSTRUÇÃO

Não é o engenheiro,
mas o encarregado da construção que diz:
se você passar por dentro do canteiro da obra,
cimento vira flor.
Eu passo,
feliz por viver entre os homens.
Caminho sem idade,
a pele refletindo vermelho carmim,
os quadris remexendo, carregam baldes de água.

A autoestima tem dezessete andares.



Ilustração: Chris Lamprianidis


MORANGOS E SOLIDÃO

Na meia-luz da varanda uma noite não dorme
A mulher fala ao telefone serena de solidão
O vizinho devassa seu escuro

Tenho saudade de pirilampos e da mesa farta
de vestígios e bem-querer
Agora, há uma cadeira vazia e sobras de morango
na geladeira

Retiro da boca o batom
O ar com pena de mim abre seu guarda-chuva



SIMPLES PALAVRAS

Não falo do meu amor porque dói
e dor é lugar-comum feito silêncio
subindo janela sem respostas

Não falo do meu amor porque teu corpo
não humaniza os dedos estreitados
nessa pele indefesa

Não falo do meu amor porque estou viva
Infeliz nesta sala onde um Cristo de braços abertos
não lembra em nada  tua carne lúcida e morena

Foi necessário comer um quilo de sal para te conhecer.
Ir armazenando o pão para celebrar a minha própria Páscoa.
Fazer de cada aprendizado um mapa,
percebendo que ali estão teus lábios molhados de alegria,
os espaços da fala,
as rugas que se desdobram
e a vontade de ser Ulisses em busca da felicidade.

Sete vezes te quis de volta com os mesmos vincos,
até o rasgão que não disfarça ferida e cura.

Te  amo quando palavras e silêncio se apagam
e onde cantam os galos.    



DIFÍCIL AMANHECER

Depois de tudo
ainda gravitam cheiros,
teu sorriso, um fogo lento nos dedos.

E pensar que terei de calar
num dia claro
onde minha voz e os olhos me traem.

Falo de amor.
Como se pudesse misturar
carinho, poesia em toda parte.
É que meu peito antes músculo,
agora é flor batendo, batendo.
Se insisto, é pelas açucenas,
por tua boca,
nesse poema escolhido.


Os poemas são do livro Céu Despido e As Maçãs de Antes.



Lila Maia é maranhense, e vive no Rio de Janeiro. Tem três livros de poemas: A Idade das Águas -1997, Céu Despido – vencedor do II Prêmio Literário Livraria Scortecci – 2004 e As Maçãs de Antes – vencedor do Prêmio Paraná de Literatura 2012 – categoria poesia. Fez parte das Antologias Amar Verbo Atemporal, Sete Vozes e Próximas Palavras, esta última com apresentação do poeta Ferreira Gullar.

Viewing all articles
Browse latest Browse all 5548

Trending Articles