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Literatura com baixa na carteira, de Tadeu Sarmento

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Literatura com baixa na carteira


Por Tadeu Sarmento
Quando perde o emprego, o escritor está duplamente encrencado. Primeiro porque é incapaz de usufruir do seu tempo livre, já que a literatura passa, aos poucos, a preencher todas as suas horas agora disponíveis; segundo, porque escrever, afinal de contas, nunca pagou suas — contas, de modo que precisa conseguir um salário o mais rápido possível para voltar ao paraíso da dupla jornada de trabalho.
O escritor é só um vagabundo por nostalgia, que trabalha melhor quando está — desocupado. É que longe das horas úteis, escreve com a força de uma junta de técnicos que fracassaram no mundo das decisões importantes. Mas não decide nada. Decidem por ele. Por isso lê classificados, refaz o currículo, apara a barba, treina não coçar o saco em público.
Mas não fazer diferença alguma também tem seus privilégios. O escritor sente ser capaz de escrever o dia inteiro, confiante no seguro-desemprego, pois sua vida interior é muito rica e, pelos seus cálculos, deve durar até gastar todo o fundo de garantia. Depois é implorar a compaixão das secretárias que agendam entrevistas para vagas. Até lá, escreve que secretárias têm vidas secretas depois que termina o dia diligente, pois quando está escuro, quando todos os telefones param de tocar, elas vão para trás das cortinas do escritório, com chupetas na boca e — choram copiosamente.
Conforta lembrar que William Faulkner escreveu sua obra-prima enquanto trabalhava de vigia noturno. Sim, a literatura é uma máquina incapaz de parar, pois alimentada de frustrações, pensa o escritor, embora tenha se entristecido quando soube que o vigia noturno do prédio onde mora é analfabeto. Não se fazem mais vigias como antigamente; escritores menos ainda.
E agora sem emprego, que dirá leitores. Leitores praticamente inexistem nos dias de hoje. Estão muito ocupados tagarelando nas redes sociais ou escrevendo — livros. O problema é tão grande que escritores que encontram leitores costumam escondê-los no armário (como fariam a uma amante) ou mantê-los ocupados com cafezinhos e piadas politicamente incorretas, pois, um escritor sem leitores é uma puta sem clientes e, sem editora, não tem sequer uma esquina para trabalhar.
Claro que não estou reclamando de nada. Se pareço reclamar é por absoluta falta de senso de ridículo. Ademais, escrevo esse texto para a Fired, enquanto aguardo ser chamado para a entrevista, logo, não estou aqui para girar o bambolê para ninguém. De resto, sou o próximo a ser chamado. Nem posso afirmar que não estou nervoso, mas, já aprendi o que dizer naqueles manuais de civilidade do século XIX. Que os funcionários são pagos para funcionar, interpretar a história, e é isso que quero. E isso desde que, expulsos do Éden, Deus nos ordenou máquinas de cavar. Que eu só quero cavar, funcionar, ordenar a loucura do mundo na frieza dos relatórios, os quais escreverei calmo e pisado, no expediente diurno.
Senhores, os funcionários são maquinais, sorridentes, pacíficos, cheios de uma beleza inútil. De minha parte sempre estive ao lado deles, não por coincidência, o lado dos vencidos, dos perdedores. Pois para aquele que venceu a vida é tediosa. Pensem nos que escalam grandes montanhas. Chegam lá, no topo, olham a paisagem por cinco minutos e depois se entediam. É por isso que no topo, senhores, qualquer lugar que se pare é um cadafalso em potencial. É por isso que estou satisfeito com o salário oferecido, o qual me assegurará uma vida que posso trocar, de bom grado, pelo sonho dos romances escritos, sobre os quais me debruçarei como uma velha criança sobrevivendo a três sanduíches por dia. E isso nas minhas horas de folga, não se preocupem.
Até que a secretária acena para mim. Então sorrio de volta, em agradecimento, embora saiba que quando passar por ela sequer me olhará nos olhos, pois o mundo não tem palavras a trocar com perdedores. Por isso, do mundo, só espero ordens. E se ando na rua de cabeça baixa é porque o orgulho me pesa demais nos ombros.

Tadeu Sarmento nasceu no Recife em 1977. É autor dos livros Breves Fraturas Portáteis (Fina Flor Editora, 2005) e Paisagens com ideias fixas (Bartlebee, 2012). Associação Robert Walser para sósias anônimos (2015) é seu romance premiado pelo Prêmio Pernambuco de Literatura e publicado pela editora Cepe.

Imagem: Escher


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