HERBERTO HELDER
Poemas Canhotos
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escrever poemas não é boa maneira de atordoar os tempos do verbo,
não é o mesmo que meter a cabeça num buraco abissínio,
nem perder algures uma perna
e lembrar-me depois de perder ainda a outra:
ninguém ganha assim uma barra de ouro,
ninguém glorifica o corpo queimando-o com barras de ouro,
ninguém transforma assim numa chaga a beleza humana,
tórax e membros e a cabeça por entre a espuma:
e como só de pensá-lo o corpo avança!
escrever,
deixar de escrever,
escrever ou não escrever não é acabar assim tão depressa quanto se
[pensava,
um poema ou dois ou cem não é nunca até ao fim,
escrever poemas não é apenas vou ali e já volto à morte do costume:
colinas tão próximas como se guardassem os nossos próprios olhos,
colinas tão próximas como se guardassem os nossos próprios olhos,
e logo depois leva-as o vento para adjectivos longínquos,
tudo tão prodigioso que não se entende nada:
uma rosa é uma rosa é uma rosa – disse ela em inglês
(há quantos anos li isso!)
(há quantos anos fiquei bêbado desse talhão de roseiras!)
a rose is a rose is a rose et coetera
- mudou-me a vida?
oh faminta ciência da paciência!
coisas bem menores mudaram para sempre a minha vida,
e então porque não a mudaria uma rosa compactamente múltipla?
morrer por uma rosa é que fia mais fino:
que fabuloso fio em que roca e em que fuso,
que segredo do mundo
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(entra um jovem sobraçando um maço de poemas cortados em diagonal pelo mito de Rimbaud)
poemas cortados em diagonal pelo mito de Rimbaud,
um jovem ávido cheio de cotovelos
no meio da multidão
- afastem-se afastem-se que eu quero entrar no filme,
eu quero que me descubram,
eu vim a correr de noite até aqui,
eu sou o astro de que grandeza primeira,
tragam depressa o rapaz das filmagens,
eu quero ser o actor do terramoto
- afaste-se, senhor, não é a sua vez
- não me afasto que a minha vez é sempre,
oh dêem qualquer coisa ao rapaz frenético:
um relâmpago fotográfico em cheio no rosto,
um calmante,
um sôco,
um bombom recheado maria gloriazinha,
vai ser difícil vai ser difícil o rapaz não tem escrúpulos,
tem uma fome que vem das primeiras letras,
o rapaz é órfão de toda a gente,
ele quer á força entrar no filme:
logo a primeira imagem em plano glorioso,
mas calma aí, isso não é assim tão raro
¿mas não vêem vocês aí aquele rosto faminto
não vêem os olhos assassinos?
ele era capaz de matar para ter uma chamada ao palco,
ora ora o mundo está cheio disso:
rapazes que nunca foram amados quando crianças com ranho
[no nariz e lágrimas nos olhos ardentes,
bom bom mas isto aqui não é propriamente,
eu sei eu sei contudo não custa nada,
bom para acabar com isto tudo para sempre
aprontem aí um Nobel para salvar uma vida,
¿um Nobel está bem mas enquanto espera
porque não se arranja vá lá um Cervantes um Camões uma
[coisa dessas?
pôrra dêem-lhe tudo: um reinado, uma dinastia inteira se é
[tão sôfrego assim,
melhor à cautela é melhor dar-lhe o mundo inteiro
e sem repartir com ninguém,
sim sim deixem as pessoas descansar um pouco,
é preciso é que o rapaz desampare a loja,
foda-se esta gente esfaimada!
o rapaz até parece o jovem Staline nos tempos da Geórgia,
melhor ainda assim é literatura do que política,
fica-se um pouco mais descansado
que pôrra estas cascavéis no nosso colo materno
- sussurrou a Musa,
e houve então uma corrente de suspiros conformes,
enquanto o cão danado farejava à volta,
sem saber que a morte lhe estava no sangue:
ele é abjecto
ele é um dejecto,
pior que tudo ele é o objecto de si mesmo:
devora-se a si mesmo como um polvo louco,
vá lá, dêem-lhe os prémios todos,
que ele decerto ficará em paz:
sentem-no ao lado maior de Deus poderoso,
ele já abraçou a taça de ouro,
ele entrou na eternidade com os dois pés ao mesmo tempo,
Deus pisca-lhe o olho e diz: olá colega!
e ele responde com a pergunta: estás a curtir uma boa?
e então batem nas costas um do outro
e riem, e os anjos murmuram entre si:
gloria in excelsis!
e referiam-se com certeza a si próprios e aos colegas nas alturas:
o jovem autor gangrenado,
os anjos absolutamente apanhados pela peste e a lepra,
como dependem coitados das medicinas do mundo!
paz aos seus espíritos danados
paz aos corpos devorados
paz ao seu corpo
que encontre depressa
que encontre depressa depressa
que encontre já ontem remédio nos suplementos das artes e letras
que encontre glória no suplemento vitamínico das artes e letras
depressa depressa o mais depressa possível
- ainsi soit-il, diz Nosso Senhor que anda a aprender a língua
[na Alliance Française
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os que dizem como deve ser:
e forçosamente não se aclara nada,
se é que alguma vez houve alguma coisa
ouvida ou entendida ou revelada
¡e o que eles devoraram de alfarroba,
E o desperdício de água clara!