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"METROPOLITAIN", CONTO DE NARA VIDAL

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Já era o segundo cigarro do dia e nem tinha alcançado a Voluntários da Pátria.
Parou na estação e deu a última puxada até saltar de vez na Cidade Nova.

Na primeira chacoalhada do vagão encostou o cotovelo na jovem senhora. Perfume de rosas, exagerado que fosse, pela hora da manhã. Ela lia "O estrangeiro". Deve ter ouvido a amiga falar que era alta cultura e foi lá, comprou. Edição novinha, sem dobra, sem arranhão, sem interesse. Devia ser uma burra. Ninguém tira proveito de Camus assim, de bobeira num metrô. Do capítulo três (ainda estava no capítulo três) reparou "Hoje trabalhei muito no escritório." Era lá que ia, de encontro ao fim, para a vulgaridade que é o trabalho naquele escritório. Viu pular do rosto da jovem senhora um batom tão vermelho que só poderia ser o retoque da desfaçatez dela.  Onde teria estado aquela boca horas atrás enquanto deitava numa cama que devia ser ali em Botafogo mesmo? Um rabo de olho dela e um suspiro deram pra ele o limite. Estava sendo inconveniente. Ela já tinha reparado na insistência do jogo de adivinhação dele. Abriu o jornal e foi pensar na Ana Carolina e todo o seu tão familiar tudo. Por isso foi atrás da Valéria. Pelo cansaço da própria vida memorizada e cuspida diariamente pela mulher. Precisava parar de fumar. Valéria não gostava. Ana Carolina não enchia mais o saco dele. Já estavam juntos há muito tempo pra investidas assim. A burra que lia Camus fechou o livro com um marcador lilás de corujinha. Ia saltar junto com ele na Cidade Nova. Foi atrás dela só pra acompanhar a bunda meio mole, bunda dançante. Onde teria estado aquela bunda ontem? E a boca vermelha? Arriscou um oi. Sabe-se lá... Desesperadamente apertou o cigarro na boca, a dele, que estivera na casa da Ana Carolina e da Valéria na mesma noite. Sentiu o coração apertar em nó. Não era o cigarro. Ainda não era o infarto. Era essa vida vagabunda cheia de homem cafajeste e mulher burra. Ali mesmo, do fim do cigarro, antes de atravessar a Presidente Vargas, saiu daquela boca vermelha: “Luciana. Prazer.”



*    *    *



Nara Vidal, mineira de Guarani, formou-se em Letras pela UFRJ e tem Mestrado em Artes pela London Met University. Há 13 anos mora na Europa, Nara escreve para jornais e revistas diversos. É autora dos infantis e juvenis "Arco-íris em preto e branco", "Pindorama de Sucupira", "A menina e os relógios" e "O doce plano das galinhas". Ganhou em 2014, pela segunda vez consecutiva, o prêmio Brazilian Press Awards em Londres, pelo seu destaque em Literatura. Foi também ganhadora do último Prêmio Maximiano Campos de Literatura. Neste ano Nara lança vários infantis e seu primeiro adulto.







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