Condor
A noite se encheu de estrelas mortas,
estrelas de sombra
filhas, netas, bisnetas de meus antepassados;
esposas de Deus, amantes de Maria - penetradas e lambidas.
Invejei-as.
Clamei pelo sêmem divino,
desnudei-me, santifiquei-me.
Um minuto de silêncio, um sussurro débil;
e renasci como um poema oculto no ventre de uma casa vazia,
presa à sombra de um verso nu.
Um dia, talvez, Deus haverá de me comer.
Eventos
O idoso que descobre o prazer num álbum de figurinhas;
o palhaço que encontra a alegria na escuridão de seu quarto;
o andarilho que teve as unhas pintadas de vermelho por um menino travesso enquanto dormia;
a idosa vestida de rosa bebê que deixa orações nos retrovisores das ambulâncias estacionadas no pátio do hospital;
a mulher que dedica a vida àquele que haverá de matá-la;
a mãe que desiste do filho poeta, por julgá-lo fracassado;
a vida amarga de um vendedor de algodão doce;
a bala perdida que encontrou o seu destino no corpo de um menino que brincava de esconde-esconde;
o pai que se nega a prestar socorro ao filho para não ofender a esposa traída;
a modelo iluminada presa à moldura de uma tela azul céu.
Alguns eventos que compõem o mundo.
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Ilustração: Barbara Cole |
Volúpia
Todas nós, mulheres do mundo,
somos Virgens Marias,
parimos virgens e continuamos virgens;
todas nós, mulheres do mundo,
temos um José ausente, insuficiente;
todas nós, mulheres do mundo,
queremos um anjo Gabriel
que nos visite ao anoitecer,
todas nós, mulheres do mundo,
temos um amante invisível,
que nos acende,
nos santifica e nos penetra com seu fogo sagrado;
todas nós, mulheres do mundo,
somos o nosso próprio milagre,
o nosso próprio deus,
o nosso próprio diabo.
Todas nós, mulheres do mundo,
somos mães, irmãs e filhas de nós mesmas.
Absolvição
A poesia que eu conheço é a poesia das sirenes, das páginas policiais, da má vontade das atendentes e dos gritos ignorados nos corredores dos hospitais públicos; a poesia que eu conheço é a poesia dos presídios, dos asilos, dos prostíbulos, das calçadas habitadas, do preconceito contra pobres, putas e viados; é a poesia do câncer que devora, do filho que não vinga, do filho que não volta, da bala perdida que nunca se perde, do pai de seis e do pai aos dezesseis; a poesia que eu conheço não voa, não anda, rasteja.
A poesia que eu conheço jamais será declamada porque existe para ser cuspida, vomitada, tragada, bebida, injetada; a poesia que eu conheço existe para ser gritada na voz do andarilho, do velhaco, do moribundo, do bêbado, do sujo, do esfomeado, do marginal e do louco, porque os loucos também sofrem.
Alvorada
Enquanto chamavam-na de puta, vadia, louca e outros tantos adjetivos depreciativos, ela aprendia a viver. Aprendia que por amar demais jamais seria totalmente livre; descobria a superioridade dos animais sobre os seres humanos; compreendia que a religião jamais a salvaria; reconhecia em si uma capacidade imensurável para negar o cinismo humano; identificava-se cada vez mais com a poesia; não com a poesia romântica e subjetiva, mas com a poesia das falsas aparências, da solidão, do preconceito, da inveja, do sensacionalismo, do desprezo, do egoísmo, da indiferença, da covardia, do crime e da impunidade; a poesia da vida em todas as suas dimensões.
Tereza Du'Zai, natural de Itajaí, SC, é poeta, contista, cronista e professora de Língua Portuguesa e Literatura. Atualmente, a autora tem se dedicado à produção, à organização e à divulgação de sua obra literária.