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Minha Pietà
Larga o menino, minha Pietà debutante. Larga o menino! Ser sem vida que lhe esconde o seio, que me mata. Você não lamenta sua morte; dá-lhe vida. Larga o menino, minha Pietà às avessas. Chama-me depravado? Herege? Iconoclasta? Asperge-lhe com leite o seio farto, suga-lhe o bico em riste. Depravado? Antes apaixonado. Antes devoto. Quero sorver-lhe o leite visceral, alimentar-me de ti. Oh, minha Pietà. Causa-me dor. Agonizo, deleito-me em prazer.
Observo seus movimentos de longe. Quero que me perceba, quero que me veja. Muita gente no ônibus, tenho que me controlar. Não quero que os outros me percebam, só você. Mais um movimento seu, mais uma troca de posição e vislumbro mais uma vez essa fonte lúbrica de desejo. Por um segundo admiro o bico rosado que me mata de prazer. Larga o menino, minha Pietà surreal. Larga o menino! Por um segundo você me olha. Ajeita o bico com a mão livre e entro novamente em transe. Em estado de alerta. Quero que admire o Colosso de Rodes. Seu Hélio suplicante assim deseja.
Devidamente alimentado, o pequeno nefelibata dorme nas nuvens. Você recolhe o seio branco igual a um anjo de Botticelli. Morro. Agonizo. Ser delirante perdendo o juízo. Sem sutiã, os seios fartos apontam seus bicos rosados acusadores pra mim. Piedade! Piedade! Piedade! Pietà! Pietà! Pietà! Vejo os bicos grandes através da roupa branca. Quero sentir seu gosto tenro, úmido e doce. Quero banhar-me em sua fonte ancestral. Espera por mim.
Na roupa branca, na altura do seio esquerdo, há marca de umidade. A fonte ainda não secou completamente, e o bico rosado evidencia-se imponente, duro, em alto relevo sob a camisa branca. Queria tocar-lhe, minha Pietà ontológica, musa abissal deste teu servo errante. Minha língua passeia alegre ao redor desses bicos suaves e intumescidos e, sentindo sua doçura, deleito-me em tremores delirantes, em estertores.
A chegada ao terminal e a parada do ônibus me tiram do transe. Morfeu me abandona e volto à realidade. Triste realidade. O pequeno ainda dorme. Arrisco uma aproximação, mas não tenho coragem. Parece que a qualquer movimento você pode sumir. Musa onírica.
Desvanece na penumbra de meus sonhos torpes. Abre os olhos, menino. Abre os olhos e grita faminto, exige o que é teu de direito. Grita o mais alto que puder, grita por tua existência. Grita por nossa existência, meu menino. Suga tua fonte, bebe do teu sorvedouro, do meu sorvedouro.
Não acorda. Dorme tranquilo, sem preocupações, alheio a tudo. Minha Pietà predadora. Devora meu peito arfante. Me joga aos leões, cospe em meu rosto, me afoga em teu veneno. Não levante, não me prive de tua imagem. Eu deliro, não ordeno meus pensamentos. Sob a égide da inocência o nefelibata reclama seu afeto. Que também é meu. Compadeço-me. Gritando por mais, abocanha-lhe o seio farto que salta em minha frente. Novamente procurando uma posição mais confortável, leva o bico rosado à sua boca. Que também é minha.
Minha Pietà, larga o menino!
Noite de natal
Não é apenas a solidão que incomoda, mas também o silêncio. O silêncio desses corredores é terrível, assustador mesmo. Me colocaram num quarto só pra mim. Finalmente adiantou alguma coisa eu pagar o plano de saúde. Meus filhos previram isso: o senhor fica doente, e daí? Como se eles já deixassem bem claro que ninguém iria cuidar de mim. Como se eu quisesse algo deles. Bem que um pouco de companhia não seria de todo ruim. O paciente do quarto ao lado recebe quase diariamente a visita de um rapaz. Imagino que seja o filho pelo carinho e cuidado com que trata o velho. Não deve ser muito mais velho que eu. Ele anda a passos curtos, sempre com o soro e uma sonda ao lado. Nunca fala. Deve ter sofrido um derrame.
Hoje eu vi o rapaz passar pela minha porta. É natal, então outros familiares devem aparecer para visitá-lo. Ninguém me visita há uma semana. Nem ligam. Nem um cartão de natal. Nada. Acho que eu até preferia ter sido atendido pelo SUS. Lá eu ficaria em uma enfermaria, mas pelo menos teria com quem conversar. Lá não conversaria só com médicos e enfermeiros, mas com pessoas normais, doentes como eu.
Fui diagnosticado com câncer na próstata, e estou internado há quase dois meses. A doença faz com que vejamos certas coisas do cotidiano de outra maneira. As coisas simples do dia a dia tornam-se grandes acontecimentos. Uma delas é dar uma boa mijada. Como eu queria tirar o pau pra fora, rijo, e descarregar aquela mijada gostosa no vaso fazendo barulho na água. Faz tempo que isso não acontece. Não consigo mijar direito e meu pau não endurece faz tempo. Não endureceu nem quando a enfermeira me deu um banho hoje de manhã. Não senti absolutamente nada. Só constrangimento por ela pegar naquele caralho mole e flácido. Eu até cheguei a pensar que ela estava brincando com ele. Eu podia pedir que ela desse uma chupada, mas com certeza ela não atenderia meu pedido e reclamaria para algum médico.
Uma simples caminhada pelo corredor também é uma odisséia. Me arrasto por um corredor que pra mim parece interminável, cheio de obstáculos. Com muito esforço chego à janela que dá pra João Gualberto e lá embaixo vejo milhares de carros, ônibus, pedestres andando de um lado para o outro na corrida desenfreada pelas compras de natal. Fiz muitas caminhadas pela João Gualberto. Moro, ou melhor, morava, a três quadras daqui, perto do estádio. Agora olho para trás e vejo o tanto que andei, talvez uns 20 metros, e tenho que voltar, pois já sinto um cansaço absurdo. A volta para o quarto é outra viagem. Ouço o barulho dos chinelos arrastando no chão e isso me entristece ainda mais. No que me tornei? Sou um pedaço de carne estragada vivendo os últimos momentos sozinho em um hospital. Seria mais digno meter uma bala na cabeça de uma vez. Eu até imagino o bilhete que deixaria: “Carlos, Jorge e Samira (meus filhos) quero que se fodam”.
Como eu imaginei, o velho do lado recebeu a família nessa noite de natal. Eu pude ver o mesmo rapaz que vem todo dia, duas crianças e duas mulheres. Talvez a esposa e a nora. É uma família bonita. Sacrificaram a noite de natal deles para fazer companhia ao velho. Confesso que sinto uma ponta de inveja, mas entre ficar sozinho e ficar com meus filhos, acho que o melhor é ficar sozinho. São uns filhos da puta. Depois que fiquei viúvo foi cada um pra um lado, nunca me ligam nem me visitam.
Eu queria mesmo passar a ceia com o velho e sua família. Vou me arrastando pelo corredor em direção ao quarto ao lado, mas a porta está fechada. Não vou bater, não quero atrapalhar sendo um intruso. O melhor é voltar para minha cama e esperar essa noite acabar. Vai demorar pra passar, mas não há outra alternativa. Daqui a pouco o médico chega para sua avaliação de rotina e depois a enfermeira traz aquela comida nojenta. Apenas espero. Ouço os passos no corredor. Eles estão chegando para o mesmo ritual macabro de todas as noites: tentar adiar minha morte. Eles entram no quarto. Não quero conversar. Fecho os olhos e me viro para o outro lado.
Ilustrações: Gustav Klimt
Ilustrações: Gustav Klimt
Daniel Osiecki nasceu em Curitiba, em 1983. É professor de literatura, crítico literário e editor regional da Revista Flaubert. É colunista do Jornal Relevo, de Curitiba. Publicou o livro de contos Abismo (2009) e seu segundo livro, Sob o signo da noite, está no prelo. Mantém o blog Távola Redonda (www.novatavolaredonda.blogspot.com).