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SERGIO MELLO - INÉDITOS e OUTROS

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CAMARGO, IberêSolidão, 1994. Óleo sobre Tela. Fundação Iberê Camargo.



INÉDITOS



A Marco Archer

skatistas da verdade
profetas fedendo a lotéricos spoilers
defensores da ordem
alfabética
tapeçaria náutica
de uma realeza por W.O

orquestras de câmara de carimbos
tristes manadas
de elefantes banhando-se na música

distraídas manhãs
que irrompem das trevas
com uma estrela-do-mar incinerada no ombro

é Artaud
a estrela com sorriso de golfinho
é Artaud
a estrela que com CIRCO NOIR
a tudo etiqueta
ao afagar medulas de lã militar
do inflexível corpo
de baile rumo

à alma dos únicos
que a golpes
tatuaram em seu próprio reflexo
a sagital e inexpressiva máscara
  

Hemingway

meu avô me falando da tarde em que parou um touro
com uma bíblia
sem que os chifres perfurassem a capa negra
e de um homem
no exército
que de tanto temer que descobrissem sua homossexualidade
a cada manhã sua voz se tornava mais aguda

meu avô chorando de dor
ao tentar massagear o trecho da sua perna que havia ido
pro lixo
meu avô sorrindo ao lado de um par de muletas de segunda mão
e me apontando uma prótese de plástico
como se fosse um Westley Richards cano duplo

e depois havia as terríveis noites
até que sua mão
pastoral
pousava sobre minha cabeça
a um dialeto ventoso e de vogais nulas
por anos de alcoolismo

aos meus olhos fechados Deus sempre foi um índio
até ontem
quando sonhei que encontrava meu avô
e dizia você não devia estar aí parado na calçada
porque nós te enterramos

e sorrindo ele refutava não filho
foi exatamente o contrário

O Tchekhov dos subúrbios

Para J. Cheever

sunset adolescência
à sombra
do entre dia e noite que trapaceia
trocas de guarda
a postes de iluminação pública
choque entre rainhas
single life de um futuro contista
em modo aqualouco

matar aulas flanar pela cidade entocada
Quincy através de um par
de ingressos olhos de menino
numa casa de câmbio de aparições
aos ciganos todas as horas
do meu mais profundo sono pela moeda única
de uma economia futura e improvável
o troco em sonetos
à infância dos ursos

tornar-se adulto como o cinema
torna-se autoral
por milhas acumuladas em portas giratórias
suavizar arena romana
dando-lhe o nome anfiteatro
boemia doméstica
cofre infernal
que servirá de travesseiro a meu pai
quando exausto de rodopiar em clubes de tênis
num assovio improvisado a seu terno branco
cantarei madeira

reduzir as 17 xícaras diárias de café preto
inverter a frase trepar com gente errada sob luz certa
esquecer acampamentos de caça chorar
na garagem não morrer
num mictório não parar os olhos
no suplemento feminino do Times
alcachofras à minha linda esposa

insensível monstro
do lago Ness
dizem da marcha peculiar que uso para abandonar
piscinas de gim dos jardins da costa leste
mãos que revolucionaram toda uma indústria
automobilística
propondo-lhe porta-copos
não como deficiência ricocheteada
apenas ápice da mais chula biografia

mais suave que Hemingway
menos romântico que Fitzgerald
enquanto Mailer, Bellow e Roth são fotografados
à frente de bibliotecas-muralha
ouço a mais antiga sinfonia
a dos giros de chaves e
ao escorregar num Pulitzer esquecido
no chão da cozinha choro
aos pés de um filho
pedindo a Deus que me envie um catálogo
de emboscadas definitivas




CAMARGO, IberêFantasmagoria IV, 1987. Óleo sobre Tela. Fundação Iberê Camargo.




Do livro"INIMIGO EM TESTAMENTO" (2013)



Tributo

para acalmar um filipino alojado no tórax
um velho poeta aperta macarrão cru
dentro do bolso

já reparou em como uma grande obra
com dois minutos de sono a menos
pode parecer tão ou mais inútil que a dança
ou em como a dignidade
quando incomensurável
beira à pena

um velho poeta
cercado por dois ou três do The London Times
acredita que tributo é o ato mais assombroso
do homem
Tributo é nome de vilão

e isso lhe é tão claro
quanto uma circunferência de sangue
se expandindo no algodão
mas pode ser incompreensível pra você
como as árvores
que escolhem as estações mais frias pra se despir



Manhã

Rimbaud voltando pra casa
com uma Síndrome de Estocolmo
adquirida num banheiro público
Piva observando garotinhos a caminho da aula
como uma aranha cujo veneno esfriou pra sempre
Whitman barbado e virgem
febril numa cabana
Jack Spicer bêbado e paralisado feito a lua
Carver vestindo o seu único terno
pra substituir o extintor do carro
mas antes cospe um krill na boca de sua esposa
Sylvia Plath cobrindo a cabeça com uma meia-calça fumê
porque seus óculos escuros caíram no lago
e sua boneca vodu quer passear no jardim
Bukowski sentado à beira da cama
como Bill Murray no cartaz de Lost in Translation
Emily Dickinson pensando num sepultamento
com raspas de chocolate e vagalumes
Corso olhando pro Sucrilhos
preparado com o óleo do cabelo de Ginsberg
Frank O’Hara descolorindo os pelinhos das pernas
pra exibi-las no MoMA
Haroldo de Campos abrindo a porta do banheiro
e gritando à sua mãe já acabei
rompe o silêncio no céu dos poetas



The Dripper

no verão de
1956
numa estrada que leva
a Springs
Long Island
numa curva

de
um Oldsmobile conversível
capotado
como
uma
tartaruga

o sangue

de um grosso entre a Escócia
e a Irlanda
talvez Alemanha

de

Jackson
Pollock

escorre como de uma lata tropeçada é 11 de agosto
em seu estúdio e sua esposa Lee Krasner
está parada perto de seus instrumentos de trabalho 

órfãos

pedaços

de

pau algumas
facas
e objetos usados na construção civil
além de velhos
pincéis

que nunca tocaram
a superfície de uma

tela



Meditação

andar atrás de velhos lentos
não ultrapassá-los


Ainda sobre a relação entre suicídio e fuga

no contorno de giz feito pela perícia
a silhueta de alguém correndo
Breve ensaio acerca do formato da cabeça de Steve McQueen

1) intro

the king of cool exagera no álcool
e abandona cerimônia em sua homenagem
caminhando com os nós dos dedos
um primata
na lapela a alça do caixão de Bruce Lee

2) horizonte lunar

cérebro gradeado pelo tórax
no capacete um coração em pulsações marinhas
pela janela de um reformatório na Califórnia
a lua na funilaria

3) o chapéu da catedral

trigo revolto pela música
dos pegas de Bonnevilles 1960
ponto da praia em que finais de ondas
distraem os pés enquanto a areia os suga
só então o desequilíbrio é mencionado
o princípio do corpo descoberto na nuca
como o que mal trazido à vida
é posto contra a luz

4) Paris-Dakar

publicar a mais fiel biografia de um marinheiro
sua cama amarrotada
promover visitas monitoradas
a cada lombada de ar e vinco
o orgulho com que os sobreviventes
a quedas de raios exibem suas vestes
chamuscadas

5) o azul específico de todas as coisas

barrado no inferno
e tarde demais pra pegar o paraíso aberto
diz o dublê sob a fuselagem
e o dia amanhece
no azul de mil caçadas solitárias

6) ao sul de um quintal qualquer/Paris-Dakar (cont.)

a beleza de um deserto recauchutado
com a lona que envolve plantas dos pés
o tempo parado para Sam Peckinpah diante
da profecia de rachaduras que cedem não às tentativas
mas aos erros

7) moda

charme
o anúncio da flor delinquente
acesa sobre um defeito físico
antes que o reparem
embora o tempo já não seja um ponto em questão

8) túneis de melodia e mentira

dúvida outonal e semiaberta
fornos alimentados por trampolins e estalos hippies
um tremor de terra nasce na espinha de Faye Dunaway
e jamais será contido

9) amianto

o ator cínico e sujo
por não resistir à purificação
agora dorme


Tennessee Williams em uma de suas crises nervosas

levo pra me levantar da cama
o tempo que se leva
pra se recuperar de um luto

meus ossos de PVC
e seus refrãos devidamente encomendados
a nórdicos disc-jóqueis
o quase jazz de copos de vidro
chocando-se
delicadamente
contra mesas também de vidro

levo pra me levantar do chão
o tempo que se leva
pra voltar atrás

e com a língua empapada de terríveis domingos
esse Paraguai na minha cabeça
saio pra me drogar e fazer sexo nas docas


Hotel

máscara
de louça
à maçaneta
do lado
socialista
de um murro

salina bengala
de não se ir
pra longe

raio cercando
em lentos giros
blocos de ora
brancas
ora azuis
esperas









SERGIO MELLO (São Paulo, 1977). Autor de No Banheiro Um Espelho Trincado(Ciência do Acidente, 2004), cujo download pode ser feito aqui, e Inimigo em Testamento (Soul Kitchen Books, 2013). Além de poeta, é roteirista e dramaturgo. Em 2010 a Imprensa Oficial reuniu em livro cinco peças teatrais de sua autoria. Foto do autor: Edson Kumsaka.

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