CAMARGO, Iberê. Solidão, 1994. Óleo sobre Tela. Fundação Iberê Camargo.
INÉDITOS
A Marco Archer skatistas da verdade profetas fedendo a lotéricos spoilers defensores da ordem alfabética tapeçaria náutica de uma realeza por W.O orquestras de câmara de carimbos tristes manadas de elefantes banhando-se na música distraídas manhãs que irrompem das trevas com uma estrela-do-mar incinerada no ombro é Artaud a estrela com sorriso de golfinho é Artaud a estrela que com CIRCO NOIR a tudo etiqueta ao afagar medulas de lã militar do inflexível corpo de baile rumo à alma dos únicos que a golpes tatuaram em seu próprio reflexo a sagital e inexpressiva máscara Hemingway meu avô me falando da tarde em que parou um touro com uma bíblia sem que os chifres perfurassem a capa negra e de um homem no exército que de tanto temer que descobrissem sua homossexualidade a cada manhã sua voz se tornava mais aguda meu avô chorando de dor ao tentar massagear o trecho da sua perna que havia ido pro lixo meu avô sorrindo ao lado de um par de muletas de segunda mão e me apontando uma prótese de plástico como se fosse um Westley Richards cano duplo e depois havia as terríveis noites até que sua mão pastoral pousava sobre minha cabeça a um dialeto ventoso e de vogais nulas por anos de alcoolismo aos meus olhos fechados Deus sempre foi um índio até ontem quando sonhei que encontrava meu avô e dizia você não devia estar aí parado na calçada porque nós te enterramos e sorrindo ele refutava não filho foi exatamente o contrário | O Tchekhov dos subúrbios Para J. Cheever sunset adolescência à sombra do entre dia e noite que trapaceia trocas de guarda a postes de iluminação pública choque entre rainhas single life de um futuro contista em modo aqualouco matar aulas flanar pela cidade entocada Quincy através de um par de ingressos olhos de menino numa casa de câmbio de aparições aos ciganos todas as horas do meu mais profundo sono pela moeda única de uma economia futura e improvável o troco em sonetos à infância dos ursos tornar-se adulto como o cinema torna-se autoral por milhas acumuladas em portas giratórias suavizar arena romana dando-lhe o nome anfiteatro boemia doméstica cofre infernal que servirá de travesseiro a meu pai quando exausto de rodopiar em clubes de tênis num assovio improvisado a seu terno branco cantarei madeira reduzir as 17 xícaras diárias de café preto inverter a frase trepar com gente errada sob luz certa esquecer acampamentos de caça chorar na garagem não morrer num mictório não parar os olhos no suplemento feminino do Times alcachofras à minha linda esposa insensível monstro do lago Ness dizem da marcha peculiar que uso para abandonar piscinas de gim dos jardins da costa leste mãos que revolucionaram toda uma indústria automobilística propondo-lhe porta-copos não como deficiência ricocheteada apenas ápice da mais chula biografia mais suave que Hemingway menos romântico que Fitzgerald enquanto Mailer, Bellow e Roth são fotografados à frente de bibliotecas-muralha ouço a mais antiga sinfonia a dos giros de chaves e ao escorregar num Pulitzer esquecido no chão da cozinha choro aos pés de um filho pedindo a Deus que me envie um catálogo de emboscadas definitivas |
CAMARGO, Iberê. Fantasmagoria IV, 1987. Óleo sobre Tela. Fundação Iberê Camargo.
Do livro"INIMIGO EM TESTAMENTO" (2013)
Tributo para acalmar um filipino alojado no tórax um velho poeta aperta macarrão cru dentro do bolso já reparou em como uma grande obra com dois minutos de sono a menos pode parecer tão ou mais inútil que a dança ou em como a dignidade quando incomensurável beira à pena um velho poeta cercado por dois ou três do The London Times acredita que tributo é o ato mais assombroso do homem Tributo é nome de vilão e isso lhe é tão claro quanto uma circunferência de sangue se expandindo no algodão mas pode ser incompreensível pra você como as árvores que escolhem as estações mais frias pra se despir Manhã Rimbaud voltando pra casa com uma Síndrome de Estocolmo adquirida num banheiro público Piva observando garotinhos a caminho da aula como uma aranha cujo veneno esfriou pra sempre Whitman barbado e virgem febril numa cabana Jack Spicer bêbado e paralisado feito a lua Carver vestindo o seu único terno pra substituir o extintor do carro mas antes cospe um krill na boca de sua esposa Sylvia Plath cobrindo a cabeça com uma meia-calça fumê porque seus óculos escuros caíram no lago e sua boneca vodu quer passear no jardim Bukowski sentado à beira da cama como Bill Murray no cartaz de Lost in Translation Emily Dickinson pensando num sepultamento com raspas de chocolate e vagalumes Corso olhando pro Sucrilhos preparado com o óleo do cabelo de Ginsberg Frank O’Hara descolorindo os pelinhos das pernas pra exibi-las no MoMA Haroldo de Campos abrindo a porta do banheiro e gritando à sua mãe já acabei rompe o silêncio no céu dos poetas The Dripper no verão de 1956 numa estrada que leva a Springs Long Island numa curva de um Oldsmobile conversível capotado como uma tartaruga o sangue de um grosso entre a Escócia e a Irlanda talvez Alemanha de Jackson Pollock escorre como de uma lata tropeçada é 11 de agosto em seu estúdio e sua está parada perto de seus instrumentos de trabalho órfãos pedaços de pau algumas facas e objetos usados na construção civil além de velhos pincéis que nunca tocaram a superfície de uma tela Meditação andar atrás de velhos lentos não ultrapassá-los Ainda sobre a relação entre suicídio e fuga no contorno de giz feito pela perícia a silhueta de alguém correndo | Breve ensaio acerca do formato da cabeça de Steve McQueen 1) intro the king of cool exagera no álcool e abandona cerimônia em sua homenagem caminhando com os nós dos dedos um primata na lapela a alça do caixão de Bruce Lee 2) horizonte lunar cérebro gradeado pelo tórax no capacete um coração em pulsações marinhas pela janela de um reformatório na Califórnia a lua na funilaria 3) o chapéu da catedral trigo revolto pela música dos pegas de Bonnevilles 1960 ponto da praia em que finais de ondas distraem os pés enquanto a areia os suga só então o desequilíbrio é mencionado o princípio do corpo descoberto na nuca como o que mal trazido à vida é posto contra a luz 4) Paris-Dakar publicar a mais fiel biografia de um marinheiro sua cama amarrotada promover visitas monitoradas a cada lombada de ar e vinco o orgulho com que os sobreviventes a quedas de raios exibem suas vestes chamuscadas 5) o azul específico de todas as coisas barrado no inferno e tarde demais pra pegar o paraíso aberto diz o dublê sob a fuselagem e o dia amanhece no azul de mil caçadas solitárias 6) ao sul de um quintal qualquer/Paris-Dakar (cont.) a beleza de um deserto recauchutado com a lona que envolve plantas dos pés o tempo parado para Sam Peckinpah diante da profecia de rachaduras que cedem não às tentativas mas aos erros 7) moda charme o anúncio da flor delinquente acesa sobre um defeito físico antes que o reparem embora o tempo já não seja um ponto em questão 8) túneis de melodia e mentira dúvida outonal e semiaberta fornos alimentados por trampolins e estalos hippies um tremor de terra nasce na espinha de Faye Dunaway e jamais será contido 9) amianto o ator cínico e sujo por não resistir à purificação agora dorme Tennessee Williams em uma de suas crises nervosas levo pra me levantar da cama o tempo que se leva pra se recuperar de um luto meus ossos de PVC e seus refrãos devidamente encomendados a nórdicos disc-jóqueis o quase jazz de copos de vidro chocando-se delicadamente contra mesas também de vidro levo pra me levantar do chão o tempo que se leva pra voltar atrás e com a língua empapada de terríveis domingos esse Paraguai na minha cabeça saio pra me drogar e fazer sexo nas docas Hotel máscara de louça à maçaneta do lado socialista de um murro salina bengala de não se ir pra longe raio cercando em lentos giros blocos de ora brancas ora azuis esperas |
SERGIO MELLO (São Paulo, 1977). Autor de No Banheiro Um Espelho Trincado(Ciência do Acidente, 2004), cujo download pode ser feito aqui, e Inimigo em Testamento (Soul Kitchen Books, 2013). Além de poeta, é roteirista e dramaturgo. Em 2010 a Imprensa Oficial reuniu em livro cinco peças teatrais de sua autoria. Foto do autor: Edson Kumsaka.