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POEMA DE W.J.SOLHA

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O QUE EU VEJO, AUSENTE  



A cada lenta passada que dou numa das teclas cariadas do piano,  tento não me acordar,
porque pode ser que, a sonhar, fique-me claro o mistério em que se realça a falsa realidade do império que suga, do ponto de fuga, as inflexíveis paralelas que, nele, nem se perguntam: se juntam, na desmedida avenida,
sob o mesmo poder – muito forte - do Norte sobre as... desnorteadas...  agulhas imantadas.

O mesmo poder
da Morte.

Talvez, a sonhar, ouça, deslumbrado, os concertos  – todos - pra piano, que existem no teclado,
e,
sobretudo,
tudo o que foi dito e ainda há a dizer – devastador! – no do meu computador.

Talvez eu possa, em meus sonhos insanos, sugar tudo que é visto simultaneamente por todos os seres humanos
e por peixes e gatos,
ratos, lebres, macacos,
grilos, libélulas, sapos,
águias, patos,
mais a inumerável soma de algarismos do que  seria o total de olhos dos micro-organismos,
a visão – efêmera – gravada com a mesma memorização do cinegrafista na câmera,
em que põe abaixo a derradeira barreira... que a morte impõe.

Que sensação tem o rio, quando está para entrar... no mar?
Constatação, por etapa:
jamais sai do mapa.

No abandono do sono, impressiona:  que tudo – dentro e fora, livre de mim – funciona,
não sei com qual fim,
e,
ante a tela – ante as poltronas vazias - em branco,
nela alavanco... os insights – all right: como os raios que, por engano, triscam – sem dano -  acima dos vulcões, nas agitadas nuvens de erupções:

A multidão... berra, e uma bola de bêisebol passa por mim, com o tamanho da Terra.
Ergo o tapete bordado de extraordinários canários ( pra livrá-lo dos ácaros ) e.  ao  baixá-lo, a estalar, seus pássaros – na estupidez - se espantam, voando de uma só vez,
no que a série de vitrinas com esplêndidas peças de tabernáculos se acende, dando espetáculos,
e uma zebra -  ivory and ebony – se move ... na sombra da persiana, e ( piano, piano, ao som de um dedilhar de piano) sai do pijama,
o jardineiro se barbeando com cortador de grama, em brancas nuvens... que, irritadas - pois uma gaiola as captura – danam-se a trovejar e a escurecer e a disparar os raios, em rajadas,
na fechadura.

Vejo, de dentro, o mostrador do Tempo, do centro,  como nunca foi mostrado: os números, todos, olhando pro outro
lado,
a cadeira de balanço, feita de trenó e em galope de câmara lenta, sem o avanço,
a coluna vertebral que imerge, clandestina, costas abaixo, cerebral,  e emerge, lá embaixo, feito a muralha da China,
o ônibus que passa com o interior aceso, igual a uma loja de manequins - imóveis, sérios - com seus esplins,
a lua que sobe, esférica, solta, acima da parede... atormentada, envolta... de graffitis, do outro lado da rua,
devotos com próteses como ex-votos, Manet e Monet no hotel, motel, gênios em plágios recíprocos de gêmeos....

e,
entre esferas estéreis... do sistema planetário, vejo só a Terra a florir... e – o mais extraordinário – a... urdir... os irreais Sancho - só pança -, e o Quixote - que pensa; as perenes sucatas do Egito, México, Atenas; mais os reais samurais, além de Ramsés, Antônio Houaiss, o Philip Glass, Fernando Morais, e a escola de samba bombando, olha aí,
na Sapucaí.

Talvez, a sonhar, eu veja um alien...chegar... ao ventre de uma mulher:
um Kubrick, Newton, Galileu, Picasso,
Beethoven, Kafka,
Voltaire,
um...  World Player... que vire o escondido no revelado, ou – pelo menos - nos dê, disso,
um trailer.

Algo me deprime:  como se visse – efusivamente comemorado - o gol de meu time... que foi, afinal, derrotado.

Por isso, a cada lenta passada numa das teclas cariadas do piano,  tento não me acordar,
pois, talvez, a sonhar,
veja – também - em meus versos - amém - a mesma função medianeira escadaria e ladeira,
a... cordilheira de arranha-céus - que é São Paulo – Serra da Cantareira.

Talvez, a sonhar, escape -  também -  do estigma de ver o mundo só por espelho e  enigma – amém -  ... embora sem o close-up,
jamais face a face.

Talvez, a sonhar, ainda flagre... o rosto da... Ingrid Bergman... na bela filha Isabella, ... embora sem sua classe. 




Imagem: pintura de Ilaria Arpino




*    *    *





Waldemar José Solha (Sorocaba, 1941), é um escritor, cordelista e artista plástico brasileiro (radicado em João Pessoa, Paraíba, desde 1962). W. J. Solha tem passagens também pelo teatro e pelo cinema. É autor, entre outros, da trilogia de poemas longos "Trigal com Corvos" (2004), "Marco do Mundo" (2012) e "Esse é o Homem" (2013). Leia mais sobre o autor aqui e aqui.














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