Cais
a mão despe o peso
cobre o colo, a nuca
caminha outro braço
ela diz que há um cais
em seus ombros
ele molha a boca
o lábio, a sede
e oferece
a única face
Água
amar a pétala
e a ideia da pétala
guiar os rios
aguar os dedos
molhar teu nome
diluir-me
Navios
dizíamos ossos e pedras
navios de cascos alquebrados
e olhávamos de dentro do nada
com uma clareza furiosa
dizíamos de tal modo que a palavra
parecia a dor verdadeiramente dita
e não porque leve, suaviloquente
o amor deu de nomear as coisasÍtaca
nunca estivemos em Ítaca
ou nas montanhas coloridas de Gansu
mas ontem seus pés tocaram os meus
sobre as cinzas de um céu mediterrâneo
choramos, você e eu
as fendas vermelhas dos mapas
a infância traída pelo deserto
nunca estivemos em Ítaca
e agora choramos juntos
as horas consumidas pelo fogo
Bando
estamos tão longe do bando
chegamos tão perto do fogo
e ainda é inverno, grande amor
meus olhos estão abertos
- eles são luas, você diz
eu digo: pássaros pequenos
nômades, estrangeiros
um céu de onde se ir
Âncoras
há essa palavra aberta
é só uma ferida
um gesto inesperado
de navio contra rochedo
há o corpo e o silêncio
sobre eles
um peso de âncoras
Daniela Delias é autora de Boneca Russa em Casa de Silêncios (Patuá, 2012) e Nunca Estivemos em Ítaca (Patuá, 2015). Tem poemas publicados no Livro da Tribo e em diversas revistas literárias. Psicóloga, professora do curso de Psicologia da Universidade Federal do Rio Grande, mora na Praia do Cassino, extremo sul do Brasil.