Quantcast
Channel: mallarmargens
Viewing all articles
Browse latest Browse all 5548

Penumbras - Luis Roberto Amabile

$
0
0
Virginia Woolf National Portrait Gallery Gay Icons


1. As pedras no bolso de V.

Podemos imaginar que às vezes ela caminhava pelas margens do rio Ouse, no norte da Inglaterra, e de quando em vez olhava as pedras.
Podemos dizer que às vezes, muitas vezes, o mundo lhe pesava, caía sobre ela; a vida era uma grande pedra.
No último bilhete – em 28 de março de 1941 –, agradeceu ao marido por todo o amor que lhe dedicara. Porém tinha certeza de estar ficando louca novamente. Sentia que não conseguiriam passar por novos tempos difíceis. E não queria revivê-los. Começava a escutar vozes e não conseguia se concentrar. Portanto, estava fazendo o que parecia ser o melhor a se fazer. Então vestiu um casaco, cujos bolsos encheu com pedra. Caminhou até a margem do rio. Entrou na água (o casaco não a protegeria do frio das águas sempre geladas) e se deixou afundar.
Virginia Woolf tinha 59 anos. Era casada desde 1912 com Leonard Woolf, com quem fundou a pequena porém importante editora Hogarth Press. Além de contos, resenhas e críticas literárias, tinha escrito nove romances, entre eles Mrs. Dalloway, lançado em 1925, com o qual se afirmou como a grande mentora do movimento modernista e inovadora no uso da técnica do fluxo de consciência.
Por fim, devemos (mas talvez não possamos) evitar pensar naquele corpo carregado do peso da vida e vagando morto pelo rio. O corpo que vagou por mais de três semanas até ser encontrado em 20 de abril.




2. A luz e a escuridão de John Cheever

O norte-americano John Cheever (1912-1982) ficou famoso pelos contos publicados originalmente na revista The New Yorker. Pela elegância e sutileza de sua prosa, ele recebeu designações como “arauto da beleza e da luz”, "o Tchecov americano", “autor de textos aconchegantes”. Em 1978, a coletânea de suas histórias ganhou o prêmio Pulitzer – algumas delas foram reunidas em 28 Contos de John Cheever.
Mas seu estilo ficcional e a imagem pública que ele fazia questão de manter, a de um feliz pai de família, não correspondem em nada ao seu cotidiano. Segundo Blake Bailey, autor da premiada biografia Cheever: A Life, a zona de segurança do escritor era a sua imaginação – “esse universo alternativo de onde provinham as suas histórias". Já no mundo real...
O diário de Cheever, que veio a público pela primeira vez nos anos 1990 na The New Yorker e depois saiu em livro, é um marco do gênero. Algumas passagens saíram na revista Piauí em 2011 e estão disponíveis on-line. Considerado do mesmo nível estético (e às vezes até melhor) que a ficção do autor, o diário difere nos temas e nas formas. Segue um tom soturno. Revela um homem sofrido, cheio de raiva e segredos. E que na vida particular acabou derrotado pela escuridão que trazia dentro de si.


Author Ernest Hemingway

3. Qual o maior perigo para um escritor-caçador?

Ernest Hemingway (1999-1961) adorava caçar. Na infância, eram os peixes, num grande e generoso rio, ou lago, no recanto de férias de sua família.
Foi na adolescência que se interessou pela árdua caça às palavras. Sofria para encontrá-las e depois encaixar umas nas outras. Às vezes, pareciam na mira, mas escapavam. Ele persistia. Com o tempo, tornou-se um caçador exímio. Tanto que ganhou troféus como o Nobel e o Pulitzer.
Ainda jovem, decidiu perseguir também conflitos bélicos. Alistou-se de motorista de ambulância na Primeira Guerra. Engajou-se na Guerra Civil Espanhola e na Segunda Guerra como correspondente jornalístico. Viveu intensamente algumas batalhas.
Viveu intensamente, não há como negar.
Aventurava-se em safáris na África. “Os animais morrem de forma digna”, dizia. “Feito um touro na arena”. Sim, também era apaixonado por touradas, e, como todas as suas paixões, essa apareceu em seus livros.
Abatia garrafas. Bebendo-as até o fim. E mulheres. Seu charme rude capturou quatro esposas. A última delas fez tudo para que ele não sucumbisse ao maior perigo que enfrenta um escritor-caçador. Mas na manhã de 2 de julho de 1961 – após meses internado numa clínica psiquiátrica, onde chegou a receber eletrochoques –, Hemingway acordou antes de todos em seu rancho nas montanhas de Ketchum, Idaho. Então foi até a dispensa, pegou uma de suas espingardas, encontrou a munição, carregou. E caçou a si mesmo.



Luís Roberto Amabile (Assis, 1977) cursou mestrado em Escrita Criativa e agora se doutora em Teoria da Literatura. Teve contos e peças incluídos em antologias no Brasil, em Portugal e na Espanha. É autor de O amor é um lugar estranho (Grua, 2012, finalista do Prêmio Açorianos na categoria contos) e O livro dos cachorros (Patuá, 2015). Em 2014 foi contemplado com a Bolsa de Incentivo à Criação do ProAC/SP.

Viewing all articles
Browse latest Browse all 5548