Quantcast
Channel: mallarmargens
Viewing all articles
Browse latest Browse all 5548

TURN AWAY: Um conto de Diego Moraes

$
0
0




























TURN AWAY

Ficamos juntinhos ali sentados na beira do flutuante. Nossos pés na água. Submersos feito submarinos de pele e osso. Botos saltavam, barcos azulados passavam, um cão latia atrás de nós, de frente para o bar onde serpentes descansavam dentro de garrafas de pinga.

—Você precisa escutar Beck, Beatriz.

—Já escutei. É lindo, né?

—Morning Phase. É capaz de curar sua gastrite.

Não tive a intenção de instalar o silêncio naquele momento de paisagem de filme do Sérgio Andrade. Sabe deus como estava o estômago dela. O fígado, a cabeça, o útero, os ex-namorados suicidas junto com a alma devastada pelo câncer.

—Você não precisa ser eufemista comigo, Diego. Não é gastrite. É câncer.

—Sei, mas não gosto de repetir esta palavra. Ela corroí até o sol.

Lembrei-me do dia que tomamos sorvete num lugar lindo e depois passeamos num Monza prata do pai dela pela estrada do aeroporto com os braços tatuados, cheio de versos de um poeta húngaro que esqueci o nome, deixamos a brisa lamber nossos rostos ingênuos num sábado como se fôssemos crianças que aprendem a se equilibrar em bicicletas sem três rodinhas.

—Não quero que deixe nada escrito pra mim. Não quero ter um pedaço de mim num livro que quase ninguém irá ler. Tenho pavor de prateleiras empoeiradas de sebos do centro de Manaus.

—Bobagem. Você não pode regular quem entra ou sai da poesia. Não existe arte mais livre. É uma forma de alugar pedalinho no rio da tua saudade. Mesmo que você não queira um livro dedicado, vou saber que foi escrito pra você. E não existe solidão maior que a musa obscura de um artista que quase ninguém prestigia.

—Tá bom. Espera eu morrer. Não quero me emocionar mais que a luta contra essa desgraça que vai me comendo por dentro.

Beatriz tosse. O cão late mais alto. Pássaro que devora pássaro no deserto. Mistérios que damos o nome de mistérios. Ela vomita patacas de sangue no Rio Negro. Piranhas mordem nossas pernas. Tropeçamos rindo, correndo com as pernas em carne viva. Entre as vigas do porto flutuante, peixes nadavam com raiva querendo devorar a doença terminal do meu primeiro amor.



Diego Moraes nasceu em Manaus - Amazonas. É autor dos livros “A fotografia do meu antigo amor dançando tango” e “A solidão é um deus bêbado dando ré num trator”, Editora Bartlebee.



Ilustração: fotografia de Haruhiko Kawaguchi

Viewing all articles
Browse latest Browse all 5548