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Por um olhar modificado

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Ensaio em homenagem aos formandos da IV turma de Psicologia da Universidade Federal de Goiás, Regional Catalão, turma Profa. Dra. Renata Wirthmann G. Ferreira.

Quando recebi e aceitei o convite para ser o nome da turma de Psicologia que se formaria neste ano, comecei a pensar qual função me estava sendo atribuída e me senti impelida e escrever sobre o que espero de quem se forma em Psicologia. Rapidamente, me chegou a mão um discurso, como paraninfo  no Kenyon College, do escritor americano David Foster Wallace chamado A liberdade de ver os outros. A partir deste texto comecei a me lembrar dos constantes debates em aula acerca do que é o ser humano e do olhar sobre este e pensei que isto é o mínimo que espero de um formando em psicologia: um olhar modificado.

Nas diferentes disciplinas que leciono, dos diferentes períodos do curso, há, sempre, algumas questões que permanecem constantes, provavelmente por que eu, como docente e psicanalista, as considero essenciais. Até hoje não houve nenhuma turma em que o tema do que é a Verdadeira liberdade, com V maiúsculo como nos sugere Wallace, não gerasse impasses e conflitos. Nestes meus 10 anos de docência na Universidade Federal de Goiás, costumo iniciar as disciplinas solicitando aos alunos que deixem, do lado de fora da sala, seus preconceitos, misoginias, racismos, homofobias, partidarismos e religiosidades. Embora saiba que este é um pedido impossível, aos moldes do impossível da associação livre proposta por Freud na clínica psicanalítica, exijo tal esforço para seguirmos adiante. 

O desafio proposto é o primeiro passo para se aprender o que há de mais essencial num curso como o de psicologia, aprender a pensar. Para se pensar é necessário abstrair, e tais moralismos e fascismos que nos foram impregnados desde o nascimento nos tornaram cegos aos moldes de Funes, o memorioso, de Borges, que era capaz de se lembrar de cada folha de cada árvore que havia visto em cada instante de toda a sua vida, mas era incapaz de as reconhecer como árvores ou mais, de reconhecê-las como semelhantes entre si, como conceito. 

Fomos educados a ver por entre moldes e a julgar ou excluir o que estiver minimamente fora de tais delineamentos, de tal modo que nos tornamos incapazes de olhar para os sujeitos ao nosso redor. Para de fato olhar, antes devemos nos esforçar para identificar essas bagagens pré-moldadas, pré-determinadas que, na verdade, nos impediram a vida toda de pensar e permanecerão impedindo a grande maioria das pessoas. Tais preceitos morais nos levam a nos sentir automaticamente convictos de que conhecemos toda a realidade e a excluir qualquer possibilidade que não seja uma repetição, o mais exata possível, do que tais concepções doutrinaram. 

Segundo Wallace, aprender a pensar “significa aprender como exercer algum controle sobre como e o que cada um pensa. Significa ter plena consciência do que escolher como alvo de atenção e pensamento”. E Wallace adverte daquilo que poderá acontecer com seus formandos, que é o que percebo acontecer com a grande maioria das pessoas: “Se vocês não conseguirem fazer esse tipo de escolha na vida adulta, estarão totalmente a deriva”. Este estar a deriva nada mais é do que um não pensar sobre suas escolhas e seus atos, simplesmente fazer conforme uma programação padrão que, normalmente, leva uma geração a repetir sua geração precedente de tal modo que, geração após geração, pouco, ou nada, efetivamente se modifica. 

Olhar é outra coisa. Trata-se de desembaçar os olhos, retirar essa lente julgadora e impiedosa que já sabe sobre o outro antes deste abrir a boca para falar de si. O que espero ter ensinado para meus alunos, ciente do impossível que é ensinar, é que a única posição possível para um psicólogo é a de não saber. Se nada sei, a priori, sobre o outro, como posso supor que sei o que é melhor para ele, para seu corpo, para sua sexualidade, para sua vida e, até, para sua morte? Eu não sei, você não sabe e ninguém deveria supor saber. Não posso dar instruções de como o outro deveria conduzir sua vida, qual a escolha sexual adequada, se ele deve ou não ter filhos, se deve ou não interromper uma gravidez... Essa, certamente, não deverá ser a função de nenhum formando em psicologia.

A função de tais profissionais não deverá ser a de fornecer respostas pré-moldadas, esta é a medíocre função dos livros de auto-ajuda. Posso pensar sobre tal função, frente a essa posição de não saber, a partir da proposta de uma análise. O que uma análise propõe? Descobrir que, embora nunca sejamos completamente senhores de nós mesmos, somos, no mínimo, responsáveis por todos nossos atos e escolhas. Essa descoberta inicial que possibilita o tratamento, Lacan nomeou como retificação subjetiva ou, ainda, a capacidade do sujeito fazer, de fato, parte da sua própria história, como causa e resultado. As pessoas que procuram um analista costumam chegar ao consultório numa posição de vítima em relação a sua própria vida, o que não é nenhuma vantagem, pelo contrário, a posição de vítima as institui numa posição de impotência perante a vida, de tal modo que fazem análise para poder seguir adiante. Se tornar responsável pela própria história e pelos destinos dessa história, coloca o indivíduo na posição de sujeito, pois antes, como vítima, ele era objeto. Claro que não temos controle sobre todos os acontecimentos da nossa vida como um acidente, uma doença ou a violência, entretanto somos responsáveis pelo que faremos a partir do que nos foi dado, inclusive dessas coisas que, com certeza, não planejamos, mas que estão ai. É o Real que se apresenta para todos nós, mais cedo ou mais tarde. A questão não é impedir que coisas ruins nos aconteçam, elas sempre vão acontecer, mas de não se paralisar, não mortificar frente a elas.


Dentro do curso de psicologia, eu leciono Psicanálise. Este é meu referencial para eleger o olhar modificado como essencial aos formandos. Portanto, para que um formando em psicologia possa oferecer a um indivíduo esse lugar de sujeito será necessário, primeiramente, que ele tenha adquirido, ao longo de sua formação, um olhar modificado, que implica em sair, ele próprio, o quanto possível, da suposta posição de vítima do outro, pois esta dá suporte à uma posição violenta com relação aos outros: misoginias, racismos, homofobias, partidarismos, xenofobias e religiosidades, o tornando incapaz de, realmente, vir a exercer sua nova profissão.

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