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5 poemas de Wladimir Saldanha

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Ilustração: Hengki Koentjoro



SONETO DO OURIÇO


O mundo, por um,
por um orifício,
parece difícil.
Melhor o debrum...

Não vê: toda a vida
se vai no serviço
do ouro, do ouriço,
que entanto oxida.

Se julgam preguiça,
ou só avareza
(embora a certeza

que assim ele enguiça
no seu mecanismo!)
− o mar é cinismo.

 Lume Cardume Chama (Rio de Janeiro: 7Letras, 2014):



MADRUGADA: SARDINHA


A lata de sardinha é um mar podre, um mar estreito, um mar oleoso.
Empesta a cozinha quando, à noite, abrimos-lhe o bucho no intervalo do filme.
Os peixes se partem. São peixes.
A conserva não os fez dúcteis. A madrugada
não os fez banquete.

Mas a sardinha é sardônica: ri-se do solteiro, do separado de corpos,
do divorciado. Ri-se, com sua cabeça omitida.
E cai no chão. Outras vezes, é a mão que se fere

na lâmina. E recomeça o filme. E não se acha o pão.

 Lume Cardume Chama (Rio de Janeiro: 7Letras, 2014):



Ilustração: Hengki Koentjoro



A POÇA


Com pressa de comício reformaram
a praça: com declives e lombadas
e bancos naufragados no concreto.
Inauguraram, festa. Vieram chuvas.

E mais chuvas, e mais chuvas. A poça,
a já grande... – faça um V: Que vitória!
Eu que o era, mais os outros, os meninos,
zarpamos e singramos: barcos, mares

− a poça: a Grande Poça. Êia, lágrima
navegável, tal qual  primeiro beijo:
o Mar... Ou Lago Ness, mas tão alheia

a monstros, a promessas, a gravatas!
Folhas caídas boiam... − maravilha:
de manilhas entupidas brota a Ilha.

Culpe o vento (Rio de Janeiro: 7Letras, 2014)



O VALOR REAL DO TRABALHO


O pedreiro achou um cemitério de pombos no forro do teto:
recuou apavorado ante o zelo de ossinhos e plumas
ali onde os pombos se recolhiam para o último voo estático
em silêncio e sem fome os cacos de bicos os
chumaços de asas.

Pois o pedreiro teve de contar ao dono da casa
e este exigiu limpasse tudo e vedasse entradas.
E o pedreiro, apesar de suas grossas mãos, preferiu demitir-se
com isso provocando risos e raiva inexplicável
até se achar alguém disposto a limpar o pombal funesto
alguém que soubesse o valor real do trabalho

alguém sem assombros, alguém que dá de ombros
e que limpa indiferente a poeira de pombos.

Culpe o vento (Rio de Janeiro: 7Letras, 2014)



AS VÍRGULAS DE ADONIAS


Estrada e mata: aqui as vírgulas
de Adonias, sobre Cajango.
O ódio que avança em pausas:
pausas que são soluços.

Estrada e mata: andar, três passos;
descalços, no chão, os pés.
Um staccato constante
olhando pra dentro: marés

de estrada invadindo a mata
invadida pelo roçado.
Mas quem vai vingar Cajango?
A vírgula aqui faz alvo.

Como sacara Adonias
que vírgula pudesse tanto?
Correndo fazenda? Parando
aqui e ali, pra ver as crias

do cacau, mas tenso: facão
na cinta, pro bicho-quando...
Adonias ergue a mão:
Pode matar Cajango.

Cacau inventado (Ilhéus: Mondrongo, 2015; no prelo.)




WLADIMIR SALDANHA nasceu em 1977, em Salvador, cidade onde reside. Estreou com As culpas do poema (Scortecci, 2012), livro distinguido com o Prêmio Literá­rio Asabeça para a Região Nordeste, categoria poesia. Esse primeiro título seria incorporado ao volume Culpe o vento (7Letras, 2014). Lançou ainda Lume Cardume Chama (7Letras, 2014) − obra selecionada para publicação pela Fundação Cultural da Bahia. Participou das antologias portuguesas Poetas na surrealidade em Es­tremoz (2007) e DiVersos – Poesia e Tradução (2008). Recebeu menção honrosa do Prê­mio SESC de Literatura 2011-2012, categoria livro de contos. Possui formação jurídica, sendo também mestre e doutor em letras pela UFBA. Seu próximo título de poesia, Cacau inventado, será lançado em 2015, pela editora Mondrongo, de Ilhéus

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