tudo à volta evoca paz, caem pétalas de cerejeiras em câmera lenta, a cena é filmada em bullet time no pátio de um monastério, aos pés da montanha de topo nevado, num travelling que contorna a arquitetura a paisagem os monges de metal que ostentam seus vincos de fábrica, túnicas laranja ou nus, sentados em lótus, sob a aurora do único encaixe possível de todas as peças móveis...
respirando... ? [trinando]
respirando... ? [zumbindo]
respirando... ? [bzzz trrr rrrr zzzz]
tudo está lá, apesar de não podermos ver, as máquinas não captam, desde sempre esteve lá, a luz é tragada como num buraco negro, mas perto, bem perto dos olhos, apenas a alguns centímetros das epidermes sintéticas, pele adentro, os elétrons em vórtex, o jorro irrefreado das sensações violentas, o que nestes corpos ou máquinas se afunda é a declaração de guerra e a guerra já deflagrada com seus massacres e pesares, com seus fuzileiros artificiais formando desenhos no mapa da batalha, com suas bombas sujas, com suas miras cirúrgicas aplicadas ao combate, com seus generais kamikaze dando ordens e as cumprindo eles próprios, se explodindo junto ao inimigo, para o orgasmo dos estrategistas que se entregam aos bacanais dos assassínios, festas em que os convidados se esfaqueiam mutuamente, seus comandos de extermínio sob as fardas, medalhas e comendas, suas contendas mais sangrentas correndo nas veias nesta guerra entre glóbulos, entre células, entre átomos de carbono, que se arranjam, estranhos, quando todos os corpos são pilhas de blocos soltos, flutuando uns sobre os outros, robôs ou homens, e no espaço entre eles, toda guerra, toda ameaça, todo medo, se instala, explodem capricórnios, há sangue salpicando o jardim das flores de lótus oremos pois meditemos pois esqueçamos pois do que incomoda desapeguemos pois nossas mentes da melhor de todas as mentira da única mentira possível sobre se estar vivo ou pendendo entre o que vive e o que não vive entre a carne viva e o objeto inanimado o robô meditante - buddha-bot - nos salve nos entenda nos transcenda no aço desapegado que a carne terminará a humanidade terminará toda a sabedoria legada às máquinas espiritualizadas aos homens de lata livres de samsara ommmmmmmmmmmmmmm zrzrzrzrzrz trtrtrzzzzzz rrrrrrrzrzrzrzrzrz [ruídos de um antigo modem discando antecede o derradeiro oooooommmmmmmmmmmm do último exército dos buddhas sintéticos]
imagens: arte cinética de Wang Zi Won; filme "Doomsday book" (2012, Kim Jee-woon)
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PARTE 5
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Alexandre Guarnieri (carioca de 1974) é poeta e historiador da arte. Atualmente pertence ao corpo editorial da revista eletrônica Mallarmargens e integra (desde 2012), com o artista plástico, músico, ator e poeta, Alexandre Dacosta, o espetáculo mutante [versos alexandrinos]. Casa das Máquinas (Editora da Palavra, 2011) é seu livro de estreia e está disponível online (no issuu.com). Publicou poemas em revistas e jornais, dentre eles o Panorama da Palavra, Urbana, O Carioca, Suplemento Literário de Minas Gerais, dEsEnrEdoS, RelevO, Eutomia, Zunái, Musa Rara, Acrobata e Germina. Em 2014, participou das antologias Essas águas (Org. Vagner Muniz, 2014 [ebook]), Hiperconexões: realidade expandida, volume 2 (poemas sobre o pós-humano; Org. Luiz Bras, Patuá) e Outras ruminações (75 poetas e a poesia de Donizete Galvão; Org. Reynaldo Damazio, Ruy Proença e Tarso de Melo, Dobra). Seu mais recente livro Corpo de Festim (Confraria do Vento) será lançado em breve.