De fato, detesto poesia
com pensamentos levados pelo vento
a poesia tem de ficar
e encarar
a miséria, a pilhéria, o mau tempo
e eu
Erro de cálculo
quis explodir
o lado esquerdo do peito
deu errado
ficaram minúsculos buraquinhos
escaninhos de dor
por onde vaza seu desalinho
e entram dejetos dos outros
devagarinho o tempo todo
de brisa
ela anda pela rua como se não fosse
tempo de dedos crispados
ela em pausa:
bêbados ficam lindos
se sozinhos com o copo
há um som eterno de vidro transparente
ela é tão visível ao sol:
díspar da silhueta, ossos rijos
a vida encontrando consistência
mas eu busco:
mais do que o aspecto sadio
um vazio em seus olhos
como a metade consumida do copo
disso eu retiro meu torpor:
seres humanos se resumem a quem tem ou não
joelhos para se deslocar
sorrio
Historinha de coração desenganado de fato
O fato está na entrelinha
No meio de uma frase
Na vírgula
No jeito de buscar o ar
O fato é furtivo ao olhar
Nele não há consolo
Só meios-termos
Partindo nossa história
Ao meio
Sub real
a vida é trem no trilho
da fome do maquinista
e da mulher dele arisca
como um cão a esmo
a vida é rio no sol
da nuca do garoto
e da garota dele morta
como um peixe no Tietê
a vida é luxo no arrebol
da glória do dinheiro
e do dono dele ileso
como um herói de TV
a vida é água no olho
de gente como eu ou você
e das mucosas nossas doridas
como um canto de memória
água peixe olho trem
Buñuel pisava na estação
e sabia palpitar seu fim
como os olhos de um cão
devia saber da gente
e sabia regiamente do peixe
sob o travesseiro do enredo
despiste do dia-a-dia
nesta cidade passada pela água
cidade passado de 34 quadros
nos segundos do relógio na
parede dali
Livramento
Hoje me livro da pele
Essa armadura atávica
Hoje me livro da fala
Essa moeda de troca
Hoje me livro do medo
Essa guilhotina das ideias
Pensava ela
Enquanto rodava em círculos
No próprio quarto
Depois de socar almofadas
E ler aquele bestseller que ensina tudo sobre amor próprio
Decifrando amarelos e azuis
Abrindo as janelas ao sol
Nenhum silêncio
Nenhum e-mail
Nenhum amor me aniquilará
Estou deitada na pedra ancestral