Composição
o prato
a faca e o prato
o prato e a faca
a faca
o garfo e a faca
a faca e o garfo
o garfo
o prato e o garfo
o garfo e o prato
a mesa posta
Sedução
Na sala vazia
penduro a parede nos quadros.
A mesa sobre a toalha
espera as frutas e o vinho.
Por baixo do abajur (lilás)
o retrato envolvendo a moldura.
Estão para cima os pés das cadeiras.
A porta estreita
abre-se no teto
rente ao rodapé.
Pelo chão espalham-se as janelas.
Alguma coisa permanece no lugar:
meus sapatos junto ao beija-flor
e o batom nos olhos da mulher.
CONCRETISMO
E de concreto
resta o poema
de pedra cimento e cal
Eu e a mosca
A folha, antes em branco,
mal recebe estas poucas palavras.
Ao toque do grafite
resiste e leva-me ao risco.
Rabisco, insisto
e nenhuma ideia fixa.
No entanto,
a folha aceita
a ponderação desta mosca,
que pousa silenciosa.
Voa ao meu espanto.
Volta.
Caminha como se fosse bem-vinda.
Esfrega as patinhas
como esfreguei as mãos
ao iniciar meu texto.
(Sigo-a no silêncio das entrelinhas
onde tudo se cria
e aos poucos se transforma.)
Enxoto-a.
Ela retorna.
E assim, entre mim e a mosca,
vai-se fazendo o poema.
Duas leituras
A Leminski
Nem toda obra é prima
nem toda prima é obra.
Uma noite entre duas leituras
faz seu poema ser vil:
ir do céu de Pasárgada
ao chão da Central do Brasil.
A João Cabral
Espero meu poema
com as mãos lavadas.
A folha em branco,
sem máculas e pudica,
é berço de palavras,
solo fértil para poesia.
Nela não há o amanhã
nem as incontáveis vésperas.
Em breve o texto se revelará.
Faço um pedido:
seja mineral
o papel onde o verso se inscreve,
seja mineral o próprio verso.
Mas que eu possa debulhar as palavras,
recolher as sílabas
e fecundar o poema.
O sonho com Bandeira
Primeiro dia de aula,
expulso de sala.
Era aluno de Manuel Bandeira.
Ouvi a sentença, olho no olho,
delicado, mas incisivo:
‒ O Senhor que está de conversa,
peço que se retire.
Não estava. Recitava baixinho
para o colega ao lado um poema do mestre:
“Irene no céu”, o único que sabia de cor
e 50 anos depois ainda sei.
(Irene preta
Irene boa
Irene sempre de bom humor.
Imagino Irene entrando no céu:...)
O colega conta ao professor:
apenas declamou um poema
para uma tal de Irene.
Mal-entendido desfeito,
o poeta agradeceu e mais não disse.
Dia seguinte,
deparo com ele à porta da sala,
como se me esperasse.
Eu peço:
‒ Licença, meu mestre!
E Bandeira bonachão:
‒ Entra, menino. Você não precisa pedir licença.
A estátua
Carlos Drummond de Andrade
Ser estátua
não é pedido que se faça.
E ele nem pediu.
No banco de pedra, de costas pro mar,
pensa a cidade.
Acolhe pombos e aves agourentas.
No meio-dia branco de luz,
o menino permanece sozinho.
O homem atrás dos óculos
quer a sombra de amendoeiras.
Tem oitenta por cento de ferro na alma.
Cem por cento de bronze na eternidade.
Alguns anos viveu no Rio de Janeiro,
serviu à cidade
que agora de nada lhe serve.
Ao povo sem memória,
a história mais bonita,
comprida história que não acaba mais.
Foto: Moa Butayban
* * *
Augusto Sérgio Bastos nasceu no Rio de Janeiro. Membro das comissões editoriais dos jornais de literatura Poesia Viva e Panorama(RJ). Coordenador da Oficina de Poesia da Casa das Palmeiras (RJ). Publicou: os livros de poemas O brancoimprovável (2002) e À luz da estante (2010) pela Editora UAPÊ (RJ); Melhores crônicas de Ferreira Gullar(organização, seleção e prefácio) ‒ Global Editora (SP – 2004); Poesia completa, teatro e prosa de Ferreira Gullar (em colaboração com o organizador geral Antonio Carlos Secchin) – Nova Aguilar (RJ – 2008); Raimundo Correia (biografia) ‒ Academia Brasileira de Letras (RJ ‒ 2010); Luís Carlos (biografia) ‒ Academia Brasileira de Letras (RJ ‒ 2013). Seus poemas, contos e ensaios figuram em 70 coletâneas.