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8 POEMAS DE AUGUSTO SÉRGIO BASTOS

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Composição


o prato
a faca e o prato
o prato e a faca
a faca
o garfo e a faca
a faca e o garfo
o garfo
o prato e o garfo
o garfo e o prato


a mesa posta



Sedução


Na sala vazia
penduro a parede nos quadros.
A mesa sobre a toalha
espera as frutas e o vinho.

Por baixo do abajur (lilás)
o retrato envolvendo a moldura.
Estão para cima os pés das cadeiras.

A porta estreita
abre-se no teto
rente ao rodapé.
Pelo chão espalham-se as janelas.

Alguma coisa permanece no lugar:
meus sapatos junto ao beija-flor
e o batom nos olhos da mulher. 


CONCRETISMO


E de concreto
resta o poema
de pedra cimento e cal




Eu e a mosca


A folha, antes em branco,
mal recebe estas poucas palavras.
Ao toque do grafite
resiste e leva-me ao risco.
Rabisco, insisto
e nenhuma ideia fixa.

No entanto,
a folha aceita
a ponderação desta mosca,
que pousa silenciosa.
Voa ao meu espanto.
Volta.
Caminha como se fosse bem-vinda.
Esfrega as patinhas
como esfreguei as mãos
ao iniciar meu texto.

(Sigo-a no silêncio das entrelinhas
onde tudo se cria
e aos poucos se transforma.)

Enxoto-a.
Ela retorna.
E assim, entre mim e a mosca,
vai-se fazendo o poema.




Duas leituras

                                 A Leminski

Nem toda obra é prima
nem toda prima é obra.
Uma noite entre duas leituras
faz seu poema ser vil:
ir do céu de Pasárgada
ao chão da Central do Brasil.




 Pseudopsicologia da composição
                                                

                                                          A João Cabral

Espero meu poema
com as mãos lavadas.
A folha em branco,
sem máculas e pudica,
é berço de palavras,
solo fértil para poesia.
Nela não há o amanhã
nem as incontáveis vésperas.

Em breve o texto se revelará.
Faço um pedido:
seja mineral
o papel onde o verso se inscreve,
seja mineral o próprio verso.
Mas que eu possa debulhar as palavras,
recolher as sílabas
e fecundar o poema. 



O sonho com Bandeira



Primeiro dia de aula,
expulso de sala.
Era aluno de Manuel Bandeira.
Ouvi a sentença, olho no olho,
delicado, mas incisivo:
‒ O Senhor que está de conversa,
peço que se retire.
Não estava. Recitava baixinho
para o colega ao lado um poema do mestre:
“Irene no céu”, o único que sabia de cor
e 50 anos depois ainda sei.
         
          (Irene preta
           Irene boa
           Irene sempre de bom humor.

           Imagino Irene entrando no céu:...)  

O colega conta ao professor:
apenas declamou um poema
para uma tal de Irene.
Mal-entendido desfeito,
o poeta agradeceu e mais não disse.

Dia seguinte,
deparo com ele à porta da sala,
como se me esperasse.
Eu peço:
‒ Licença, meu mestre!
E Bandeira bonachão:
‒ Entra, menino. Você não precisa pedir licença.




A estátua

                                            No mar estava escrita uma cidade.

                                               Carlos Drummond de Andrade


Ser estátua
não é pedido que se faça.
E ele nem pediu.

No banco de pedra, de costas pro mar,
pensa a cidade.
Acolhe pombos e aves agourentas.

No meio-dia branco de luz,
o menino permanece sozinho.
O homem atrás dos óculos
quer a sombra de amendoeiras.
Tem oitenta por cento de ferro na alma.
Cem por cento de bronze na eternidade.

Alguns anos viveu no Rio de Janeiro,
serviu à cidade
que agora de nada lhe serve.

Ao povo sem memória,
a história mais bonita,
comprida história que não acaba mais.





Foto: Moa Butayban




*    *    *




Augusto Sérgio Bastos nasceu no Rio de Janeiro. Membro das comissões editoriais dos jornais de literatura Poesia Viva e Panorama(RJ). Coordenador da Oficina de Poesia da Casa das Palmeiras (RJ). Publicou: os livros de poemas O brancoimprovável (2002) e À luz da estante (2010) pela Editora UAPÊ (RJ); Melhores crônicas de Ferreira Gullar(organização, seleção e prefácio)  ‒ Global Editora (SP – 2004); Poesia completa, teatro e prosa de Ferreira Gullar (em colaboração com o organizador geral Antonio Carlos Secchin) – Nova Aguilar (RJ – 2008); Raimundo Correia (biografia) ‒ Academia Brasileira de Letras (RJ ‒ 2010); Luís Carlos (biografia) ‒ Academia Brasileira de Letras (RJ ‒ 2013). Seus poemas, contos e ensaios figuram em 70 coletâneas. 








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