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12 POEMAS DE "GLACIAL", DE JORGE ELIAS NETO

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Compondo o sitio arqueológico


A vastidão
é uma pedra
redonda e fria.
Grande esfera
onde deslizam
e desabam as criaturas.
O horizonte ‒ gelo
intransponível.
Daí esse tatear – essa procura.
A obscura arqueologia de esconder-se.

E, no silêncio,
no cu
desse branco profundo,
aguarda,
e se expande,
e fulgura,
o jardim das epifanias.




Primeiro movimento


Afora a vastidão branca,
nada mais resta
a ser perseguido.
O fogo — extinto.
Saber-se
            de partida.
Seguir o caminho do vau congelado.
Segurar-se cego
nas alvas tranças
que pendem
no absurdo.




Da construção de cidades e sentenças
  

Gélidos desfiladeiros
ladeando avenidas...
Estruturas metálicas
        — andaimes —
espinha dorsal
de enormes geleiras
que sentenciam à morte
os que ignoram a cronologia
do desespero.




Insignificância



                                                          Em que pese aos malefícios para o corpo,
                                        devemos arrastar a consciência de nossa insignificância
                                                                          Jorge Elias Neto


O azul se dissipa
em tons de desespero.

Os segundos corrompem
nossos sonhos,
e a eternidade
      consome toda inocência.

O céu conspira
dentro de mim,
ponto
sujo no útero
da neve.




A ordem natural
  

Vida,
esse distúrbio das moléculas
que se agrupam
e se toleram;
que despertam assombradas
e se espantam no turbilhão do útero;
que choram pela primeira vez,
e se expandem à busca
de esperanças;
que se esquecem da inexistência
de possibilidades
e se acasalam;
que se transformam em autômatos
e digladiam com seus iguais,
e se espantam,
pela derradeira vez;
que cambaleiam e tombam,
e que não ouvem mais
o desespero das carpideiras,
quando, já inconscientes
e verdadeiras,
              retornam
ao estado natural de fonte
energética do Universo.




Discurso para o cadáver


Teus olhos
não mentem
essa simplicidade
em dizer:
tão breve, a vida,
enquanto saturamos
o ar
com subterfúgios
e preces.

Do ponto
em que se parte
― se esquece ―
o espectro
da carne
                ― do irremediável.

Da carne
à cinza,
do torrão de
terra
ao desprezível
mármore
― questão alheia ―
(prevalecerá a vontade
                 do Universo).
Que os vivos
tratem da espessura
das trevas.
A você, o privilégio
da dimensão
onde se plantam flores.

Agradeço
a sinceridade
azul
em teus dedos,
ao lançares os dados
que julgarão
os versos
impossíveis.

E o que disse
da memória ...
A memória sem lar,
desnecessária,
posta a ausência
cúmplice.

Se pudesse
te acenderia um cigarro...
Deixaria a guimba
                 pendurada
em teus lábios.
(Como é bela e
                inútil
a  última centelha...)

Logo
chegarão.
(A boca aberta da cidade
                despeja
                       suas crias.)
Vestirei a máscara
e restarei
um momento ― breve ―
(o tempo de observar a indecisão
das chamas  perante o choro
                humano).




Máscara mortuária

  
Guardei meu último gesto.
Será um movimento
exato da mão
a cortar pelo talo
a palavra
       definitiva.

Dirão as carpideiras:

Reparem
no riso e todos
esses dentes;
a frouxidão da boca
cansada de gargalhadas
e asneiras.

O cúmplice
me encontrará sem palavras
e gelado
como a verdade.




Inércia

                                                          O que há de injusto na estupidez?

O gelo conservou os corpos.
Os gestos
    —  consumidos pelo desespero —
permaneceram.

(Sentia-se a sanha
do exercício diário
                  de embrutecer.)

O Ídolo
restava de pé.

Onisciente —
aguardava o resgate.




Um resto de sol no desalento

  
Ocupo-me de uma febre
sem propósito.
Modos existem
de forjar os dias,
principiar universos,
rir do descomunal
segredo da vida ...
Mas não nessa noite gelada
em que persisto centelha.
Eis a última pele ― a palavra ―
que se desgarra inapta
a prosseguir
afirmando
o esplendor da verdade.




Fração do indizível

  
O branco desse gelo
é todo poema ―
         verdade possível.

Entre o amor,
e outras alucinações,
o inefável me acena
caridoso.

(A grande face
e sua biografia
         de renúncias
e equívocos.)

Minha distância
não é exercício de retórica,
apontamento
de  um ególatra,
tons pastel despejados
na boca de lobo.

Não há indiferença
quando parto
e retribuo
o aceno.




Os raios oblíquos da manhã


                                                                        Poesia
                                                                         não é encosto,
                                                                          não é escora.


Na primeira manhã
foi um entregar-se à dádiva
da escolha.
Passam os dias,
e as encostas
escorrem sob o peso
do que se repete.




A simetria do caos

                                     Há simetrias
                                            nas reentrâncias do caos.
                                 Jorge Elias Neto

Desandada
         tristeza
dizer: ― sim ―
me desespero.

Descobrir o que
         ― enfim ―
conta:

a boca larga
da sombra
onde

cada um é igual
à quinta
         parte
do que lhe resta
como consolo.



Foto: Alexandre Deschaumes


*    *    *





*    *    *





Jorge Elias Neto (1964) é médico, pesquisador, cronista e poeta. Capixaba, reside em Vitória – ES. Livros: Verdes Versos (Flor&cultura ed. - 2007), Rascunhos do absurdo (Flor&cultura ed. - 2010), Os ossos da baleia (Prêmio SECULT - ES – 2013). Participação: Antologia poética Virtualismo (2005), Antologia literária cidade (L&A Editora – 2010), Antologia Cidade de Vitória (Academia Espírito-santense de letras – 2010,2011,2012,2013) e Antologia Encontro Pontual (Editora Scortecci – 2010). Colabora com poemas em vários blogs e na revista eletrônica Germina, Diversos-afinsm Mallarmargens e no Portal Literário Cronópios. Membro da Academia Espírito-santense de Letras onde ocupa a cadeira de número 2. BlogEmail.


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