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Ilustração: Konstantin Karrr |
A MORTE DO ÚLTIMO ANJO
O rosnado vem do céu
fustigado pelo vento
e a ameaçadora
queda da água: cachoeira
nada natural, represa
rebentada nas comportas.
As calçadas feito um Hades,
os fios de alta tensão
indo ao chão como as árvores.
Voa o lixo, voa à frente
a roupa dos naufragados,
esse voo diferente
de formas que se dispersam,
imersas no alagado.
Em penumbra apagado,
o sol já nunca mais quente.
Todos surdos, todos cegos,
fortes, fracos, essa gente.
Na igreja resta um padre
– vinte rezas, uma vela.
A hecatombe a chutar
nas vielas a paz, um cão
que agora uiva, ulula
trêmulo na tempestade.
A CABEÇA ABAIXO DAS NUVENS
Claro que não ando com a cabeça nas nuvens
Nem raspo o rosto ao rés do chão.
Subo escadas, desço até o porão,
Nada que gere vertigens nem me soterre.
Minha ossatura experimenta o equilíbrio
Permitido pelo que é natural, nada de
Corda-bamba que não nasci para equilibrista.
Andar sem o bambo ritmo dos bêbados,
Avançar à frente na certeza de não tropeçar.
Que mais eu quereria, numa hora em que espocam
Carnavais, torcidas organizadas e sua violência como uma efígie,
O trânsito de carros alarmado em suas buzinas, o de gente
Se debatendo nas feiras de liquidação?
Não. Não ando com a cabeça nas nuvens. Cada passo
Merece de mim o atento olhar antes de mover-me. Assim,
Não caio do prédio. Tão simples como o vento da primavera,
Conquisto metro a metro, vida a vida, esse tempo que é meu.
URBANO
A cidade abre-se em luz,
fecha-se na sombra
reduz meu olhar
se não a ouço.
Mas seu tráfego grita.
Sua gente agitada
imita o tempo sem música
e eu escorro lentamente
na direção desse mar.
Sou um afluente
que a avenida recebe,
incorpora em seu leito
e nas tardes de um sol poeirento
escorro no fluxo do cimento.
Da Zona Norte ao Centro
são trinta quilômetros.
A cidade é grande.
Sou um homem que a leva no bolso
sob a forma de um endereço.
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Ilustração: Konstantin Karrr |
A CASA
Ela nos expõe a si mesma
Nos esconde do mundo
Se vives numa casa, encolhido dentro dela
A casa são paredes, tijolos, cimento,
São ferros, vidros, fios elétricos
Sem cheiro de terra, sem as nuvens
Nela entra um pássaro e fere-se
Contra a vidraça. A grande gaiola que te protege
De ti mesmo.
Lá fora o mundo, feito de milhares de formas,
Incontáveis seres, mergulhado no voo da beleza
Cresce cada vez mais.
SAPATOS
Há vidas inteiras sem
Que caiba uma só imagem
E alguém se exige o desenho
Por se desejar homem inteiro
Devoram-se os anos e nem
Dão-se conta as súbitas décadas
Tombadas feito esse pó
Tão plácido sobre a cadeira
Eu que vi inumeráveis bichos
Plantas de que nem sei o nome
Eventos como tempestades
Tive orgasmos, esperanças, fome
Eu que pressenti a vinda
De coisas com que se brinda
Qualquer instante, por supremo
Não sabia do encontro
Pensava estar ainda
Despido dessa espécie
Rara de acontecimento
Que me revelasse um fato
Dei-me de repente em pé
Sabendo até que era assim
Que de mim brotava, sendo,
Só vestido de sapatos
Os pés magros, destemidos,
Urgentes porque pedidos
Atenderam todo ato
(Bastou calçar meus sapatos)
Então me vejo enfim feito
Dessa floração. Me ergo,
Coroo os dias, corro matos
E singro bairros sem-fim
É só calçar meus sapatos.
DESTINATÁRIO
Só eu me escrevo. Nunca
sairão do papel as palavras
que ali se inquietam
e me ajeitam sem gravata.
Só eu me creio.
Envio e-mails a dez por cento
do que recebo, e é muito.
Floresce no poema, erva daninha,
a linha de que me esquivei.
Só eu me crio.
Crivo de cravos as mãos
de um não-Cristo disposto
a carregar a pesada obra, e então cobrar
copirraite de mim mesmo. Afinal,
só eu me leio.
Paulo Bentancur nasceu em Santana do Livramento, RS, em 1957 e mora em Porto Alegre. Tem diversos livros publicados em vários gêneros, destacando-se em poesia com Bodas de Osso (Bertrand Brasil, 2005), Prêmio Açorianos de Poesia de 2005; contos para adultos em A Solidão do Diabo (Bertrand Brasil, 2006), e infantojuvenil com Três Pais (Saraiva, 2009, 5ª edição), Prêmio Açorianos de Infantojuvenil 2010. Foi jurado do Jabuti em 2004 e do Portugal Telecom em 2012. Ministra oficinas de criação literária
Contatos: www.facebook.com/paulo.bentancur
e-mail: bentancur@uol.com.br
site: artistasgauchos.com.br/paulob