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Ilustração: deviantART |
IDADE DO OURO
Não aprendi nada com a vida.
Troco os nomes, troco as pernas.
Me atrapalho com as etiquetas
e é com extrema dificuldade
que troco lâmpadas (portanto,
não vá querer agora que eu conserte esse chuveiro elétrico).
Mas ainda me fascino com as palavras
como se elas fossem coisas, bichos, pedras preciosas.
Ser poeta para mim não é destino
mas simplesmente continuar criança
em meio a uma multidão atarefada.
Não aprendi nada com a vida.
Mas, se você quiser, posso te ensinar
tudo aquilo que eu não sei.
THEOPHORUS – I
Vivo
no limite
do abismo.
Não sei se pulo
ou rio
do risco.
Quem sabe eu chore
e implore
a deuses extintos
o impossível perdão.
Se eu carrego um deus dentro de mim
para que diabos
eu quero um templo?
Vivo
à beira
do precipício.
Se eu abro a porta
eu tenho o sol
e o infinito.
(A fé, amigo,
é irmã do desespero.)
Para quem tem um deus dentro de si,
o inferno é dos outros.
LAPSO
Não posso te dar o que tenho,
porque é pouco e está empenhado.
Não posso te dar o que sou,
porque o que eu sou nem eu mesmo o entendo.
Mas posso, quem sabe, numa tarde,
no lapso clandestino de uma tarde,
detrás das cortinas de um quarto barato,
tentar converter o pouco que tenho
e o nada que sou
num universo inteiro ao seu lado.
MEMORABILIA- I
Mirar el río hecho de tiempo y agua
y recordar que el tiempo es otro río,
saber que nos perdemos como el río
y que los rostros pasan como el agua.
y recordar que el tiempo es otro río,
saber que nos perdemos como el río
y que los rostros pasan como el agua.
Jorge Luis Borges
Esta noite, caso queiras, podes recordar,
recuperar no rio do tempo uma parcela do que o tempo te levou:
o sol poente, o banco, o parque, a última conversa,
a frase que, louca, te feriu a face
ou a palavra que, covarde, amargou calada na garganta
quando na verdade tu a deverias ter gritado aos sete cantos.
Podes apenas recordar. No máximo, concatenar os fatos
e tentar descobrir aonde erraste. E dizer-te: foi aí que me danei, foi aí.
Mas de que adianta? Águas passadas não movem moinhos.
E, convenhamos, tu nunca foste um Quixote para enfrentá-los. Resta-te somente
recordar, reviver – o que não tem necessariamente relação com o que foi
ou deixou de ser vivido – abrir um uísque, ouvir um jazz, encher a cara...
E mergulhar nas águas escuras do rio.
Não o rio do tempo, que, cristalino e impassível, se ri de ti,
mas o rio de águas sujas que banha a cidade de teus tempos idos,
esta cidade que, estrangeiro, revisitas agora...
Mas o mais provável é que apenas acordes de ressaca.
MEMORABILIA- II
Olhar o rio e compreender que o tempo
é um rio que flui e não retorna, e, se retorna,
será, num tempo outro, um outro rio.
Olhar o rio e compreender também
que, se as suas águas as nossas mágoas
levam, é nesse rio, além da foz,
além do mar, além da noite extrema,
que as nossas lágrimas se transfiguram,
iluminadas não das mágoas mortas,
que destas já não há nenhum remédio,
mas daquelas que ainda surgirão,
pois se há fluir, se há correr, se há viver,
sempre haverá sofrer, e pena, e mágoa.
Olhar o rio e compreender que o tempo
é o rio sem fim em que nos batizamos,
irremediavelmente naufragados,
todo dia, toda hora, a todo instante.
Olhar o rio e aceitar que não podemos
nos agarrar aos ramos e às raízes
da encosta – e que os barrancos nem sequer
a fantasia da estabilidade
nos podem, despencando, transmitir.
Olhar o rio e compreender enfim
que, se a sina de todo rio é o mar,
o fim de toda gente é navegar,
ai, sem cartas, sem ferros, sem correntes,
em direção do insofismável mar,
na imensa noite que da noite outra
cai, silente, solene, generosa.
Olhar o rio e, mais que compreender,
reconhecer que o fim, no fim de tudo,
é se deixar levar por essas águas,
sem reservas, sem medos, sem paixões,
até que, num rio outro, além da noite última,
possamos vir à tona, como arcanjos,
nas águas límpidas do não-ser.
Otto Leopoldo Winck mora em Curitiba e é autor do romance Jaboc, lançado pela editora Garamond em 2007. Desacordes, de sua autoria, recebeu o Prêmio Governo de Minas Gerais - Poesia 2012.