Reconhecidamente com a produção mais valorosa na poesia, o Simbolismo não deixou de produzir, fosse no teatro ou na prosa, obras de importante qualidade. Os exemplos são vários: na França, J-K Huysmans, com os seus importantes romances (entre os quais o Às Avessas, publicado em 1884); na Bélgica, o teatro do Nobel de Literatura Maurice Maeterlinck (A Princesa Melaine, em 1889); em Portugal, as raras, mas importantes páginas de drama de Eugênio de Castro (Belkiss, em 1894), além dos romances, principalmente, com Raul Brandão (A História de um Palhaço – Vida e Diário de K. Maurício, publicado em 1896). No Brasil, apesar das boas obras de Gonzaga Duque (Cidade Morta, de 1899) e até mesmo de Nestor Vítor (com os contos reunidos em Signos, de 1897), o mais bem terminado trabalho da ficção simbolista brasileira ficou por conta do morretense Rocha Pombo (1857-1933), que em 1905 lançou a sua obra-prima No Hospício, de inegável alicerce místico, principalmente católico, não obstante algumas características políticas que cingia (como o flerte com a anarquia). Não pretendo, neste ensaio, fazer um resumo da obra – mesmo porque seria desnecessário -, mas sim mostrar algumas de suas tópicas-base e pincelar algumas discussões.
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Rocha Pombo: Alicerce em J-K Huysmans (Créditos: ICNews) |
Utilizando-se do mesmo processo construtivo que Huysmans optou em Às Avessas, o livro de Rocha Pombo tem, em verdade, um enredo obscuro, sendo muito mais relevante o “texto-no-texto” do que o encaminhamento dos personagens no decorrer da obra. Os personagens – isolados em um hospício (tornado, em si, um símbolo para o claustro, figura tão comum aos simbolistas) – divagam entre contemplações divinas, descobrimentos e declamações poéticas, filosóficas e metafísicas. Fileto, que inicialmente era como um objeto de estudo para o narrador, torna-se uma alma-irmã deste; quem os une, pouco a pouco, é a personagem serenamente imaculada de Soror Teresa (outra figura corriqueira do Simbolismo). A atmosfera da obra e seu ambiente tingido, quase sempre de ocaso, contribuem para uma perspectiva de fin de siècle, mas assistida externamente, quase indiferentemente, como se o hospício fosse por ele mesmo a torre de marfim ideal dos simbolistas.
Andrade Muricy, em seu Panorama do Movimento Simbolista Brasileiro, fez algumas importantes observações sobre a obra, inclusive sobre a recepção crítica. Ei-la: “O seu estranho romance No Hospício muito sofreu por ter aparecido numa época de predomínio materialista e naturalista, que não obstara, entretanto, ao sucesso anterior de Canaã, de Graça Aranha, de feitio predominantemente simbolista, e que anunciava o misticismo exasperado de Malazarte. A crítica, simplista, e mesmo elementar por vezes – a mesma que desconhecera Cruz e Sousa – não tomou conhecimento de No Hospício. Nesse livro, contudo, observam-se notas precursoras do romance metafísico. Nele encontramos elevado senso místico, aventuras curiosíssimas do pensamento, um escorço de poema épico-filosófico (págs. 60 a 67), além de páginas que valem por poemas em prosa, admiráveis de profundeza iluminada, e tipicamente simbolistas, tanto no que concerne ao vocabulário, como à temática e à atmosfera espiritual.” Não coincidentemente, o Às Avessas de Huysmans, um livro de um personagem só, absolutamente oposto ao Naturalismo de Émile Zola, recebeu avaliações duras dos críticos da época, que estranharam o rumo tomado por Huysmans, antes discípulo do autor de Germinal. O romance simbolista, sobretudo por sua obscuridade de enredo – confrontando totalmente a lógica positivista da arte -, foi, talvez, um dos grandes alicerces do embate entre a arte vigente e o Simbolismo que surgia (já que a poesia, em alguns casos, demorou para livrar-se de algumas perspectivas parnasianas de estética).
Não raramente Fileto e o narrador discutiam questões de arte, de filosofia, (incluindo-se Nietzsche e Schopenhauer, dois dos filósofos prediletos dos simbolistas), a importância do gênio ou do pensamento artístico para o desenvolvimento do mundo. Um dos interessantes trechos acerca disso é um presente no capítulo XI. Vejamo-lo:
“O gênio... é a visão, é uma quase sensação dos grandes mistérios... O gênio é o espanto do sábio em presença do Universo... é o esforço da vida por atingir a grande consciência... é a vertigem do espírito nas alturas onde se fica, por assim dizer, fora da existência concreta, e onde o espírito se sente absoluto para enfrentar com a luz infinita da síntese moral... Um homem só tem gênio quando está fora de todas as relatividades e, portanto, quando está completamente livre. E tanto que, às vezes, o mesmo espírito que ascende à genialidade, desce, também, até o torpe... (...)”
Sobre as “aventuras curiosíssimas do pensamento” a que Andrade Muricy se referiu, estão no Fragmentos, pequenino livro que Fileto produziu em sua cela. O narrador descreve algumas dessas divagações – muitas das quais cingem a teoria simbolista, católica e até mesmo anarquista. Eis alguns:
FRAGMENTOS (no capítulo XV de No Hospício)
II – O mais que a arte pode é sugerir...
IV – Creio que é muito mais legitimamente humana esta sagrada vacilação do meu espírito ante as coisas que vejo e que sinto... O verdadeiro espírito vacila sempre. Mas – vacila... Vacilar não é duvidar. Vacilar quer dizer – não ter certeza de que não exista uma verdade acima da verdade que se conhece... - Só não vacila o instintivo. - Portanto, aquilo a que se dá, comumente, o nome de caráter entre os homens do mundo, não é mais, talvez, do que um indício de inferioridade moral. Baixai na escola da vida e encontrareis, sempre, mais caráter... A hiena tem mais caráter do que todos os homens que se jactam de ter caráter...
V – Dou mais por quem sabe ouvir. Em regra, nos diz pouco aquele que tem muita sofreguidão de dizer.
VIII – Não tolero que me obriguem a dizer tudo... Quero me me entendam por uma palavra, por um movimento, por um sinal. É por isso que acredito que uma nova arte ainda está por vir, uma arte para os espíritos: uma arte que nos revele as grandes figuras apenas pelas diagonais...
XXII – Por mim, afirmo: mesmo neste mundo se pode ser bastante feliz. Quereis porventura uma alegria mais simples, mais profunda e mais consoladora do que a de um espírito que se pode encontrar com outro espírito? Dizei-me: só a felicidade de podermos reconhecer o gênio não é já uma grande compensação às durezas da vida?
XXIII – Convencei-vos: é cara a alma que, bem conhecida, não nos encante.
XXIV – A paixão que me dominou no meio de todas as vicissitudes da minha vida foi sempre um esforço incessante para o Divino. O que não tem relações com o pensamento do supremo Mistério – eu ponho de lado. Mas afinal – que haverá que fique fora de tais relações? Para mim, todo o Universo está diante de um espírito, ansioso por entendê-lo.
XXX – Uma alma me interessa muito e muito mais do que uma nação...
XLI – Venham provar-me que um general serve melhor à pátria do que serve um sapateiro...
XLVI – O Estado é a força que se erigiu em ordem, é a iniquidade organizada, é o domínio legítimo da injustiça. Guerra ao Estado! Eis o dever de todas as consciências!
LI – O que há mais perigoso para uma alma é triunfar no mundo.
LXIII – Antes de se ter visão capaz de ver, através de tudo, a gênese espiritual, a gênese das almas, nada se entende da Criação.
Acerca dos trechos que praticamente se igualam a poemas em prosa, Andrade Muricy refere-se ao Minhas Criaturas, livreto cedido por Fileto ao narrador no capítulo XVIII. Alguns textos são de espetacular imaginismo e de uma profundidade sugestiva diante dos quais não haveria outra forma de nomear esses “ensaios de arte” (como Fileto os chamou) senão de simbolistas. Um deles é o longo e genial “A Estátua de Hulme”. Ei-lo:
MINHAS CRIATURAS (no capítulo XVIII)
A ESTÁTUA DE HULME: Tanila, alma agitada de de Sófocles, ressurgida para a estatuária, tinha lançado um repto solene a Hulme, o mistério implacável da sombra, vindo lá daquela natureza boreal da Finlândia, para ficar, como em êxtase eterno, ante a opulenta eclosão e a indiscreta luxúria da natureza do sul. Os dois artistas, imóveis, face a face um com o outro, eretos como dois fantasmas que se medem, luminosos como astros que se fulminam, estiveram, por instantes, na mudez indizível de almas que se encontram e se surpreendem. Pelos olhos, lúcidos, profundos, despedem raios como deuses, numa explosão de cóleras divinas. Mas Tanila falou, conspecto carregado, gestos estranhos, tendo no semblante imortal uma claridade de auréola... dir-se-ia já um reflexo da vitória futura... E, por uma espécie de instinto, a turba sente, sem o saber, o que há de grande na majestade astral do gênio: a turba aplaudiu a Tanila. - Hulme, porém, sempre impassível, numa gravidade inalterável de pontífice orando, derrama, quase a sorrir com doçura e piedade, o seu olhar soberano pela turba. E depois, estendendo a mão a Tanila, saúda-o com tal movimento de alma que Tanila estremeceu. No dia aprazado, sob um céu azul, no meio de vasta esplanada, a multidão, ansiosa recebe os dois inspirados. Mas só Tanila, com séquito imenso, traz a sua obra suprema, e manda erguê-la na praça. De súbito, ouviu-se um trovejar de palmas, uns longos alaridos como ulular de tormenta. A estátua é uma alegoria do gênio: uma bela figura estranha, sobre elevado pedestal, elançada para o céu, numa angústia ufana de deus doloroso, e a indicar, no horizonte, uma estrela que se eleva resplandecente... Parece que a estátua tem o seu olhar, iluminado e terrível, móvel e flamante, a agitar-se, perdido entre a sombra da terra e o esplendor das alturas. Dos seus lábios adivinha-se que vão irromper palavras nunca ouvidas, a trazer para fora toda a obsessão que abala aquele peito; e o seu semblante como que reflete uma luz nova de sol desconhecido. Quando o artista, com a alegria pungente de um criador de mundos, afastou a cortina, todo um povo convulso ergueu as mãos para ele e para a sua obra. O aplauso da multidão era como um vasto rugido, colossal e formidando, que causava pavor. Nunca se tinha visto no mundo um triunfo assim. - No entanto, Hulme, a um lado, continua impassível. Contempla a estátua em silêncio, como se tivesse a alma genuflexa, em adoração. Ao cabo de alguns instantes, embevecido no seu êxtase, vai alçando os braços para ela, num arroubo e numa irradiação de quem vê coisas estupendas. E entre a cabeça de Hulme e a estátua gloriosa vagou, por momentos, a curiosidade assombrada da turba. E maior foi o espanto de todos quando Hulme, no seu deslumbramento, tomou maquinalmente o camartelo, ascendeu ao pedestal e, com rapidez do relâmpago, fez tombar a estrela, deixando a estátua na sua ânsia a apontar para o espaço vazio... Ao ver mutilada a grande obra, a multidão teve um espasmo, um como delíquio de monstro ferido. Tanila, hirto, desfigurado, como se estivesse diante da morte, quis despedir num grito toda a sua aflição, e um frêmito homicida comoveu toda a alma daquela massa convulsionada. Mas assoma altivo, imperioso, sobre-humano, o vulto de Hulme, contém o seu rival e faz estacar a turba. - “Olhai agora! - clamou ele – Procurai pelo espaço o astro que se sumiu. Ditosos os que já possuem visão para alcançar a estrela invisível!” E dirigindo-se a Tanila, ali perto vencido e desolado: - “É verdade que a tua, meu caro, é a grande Arte; mas a minha é... a Arte que vem!...”
A “Estátua de Hulme”, tal qual o trecho oitavo dos Fragmentos, anuncia a força da “nova arte” contra aquela arte vigente, que não obstante a sua grandeza (“é verdade que a tua, meu caro, é a grande Arte.”) é reta e anti-espiritual, ao contrário da “arte que vem” (“Ditosos os que já possuem visão para alcançar a estrela invisível!”). Eis mais um texto de ambientação simbolista do livreto Minhas Criaturas:
NO CEMITÉRIO DA MONTANHA: Entramos. À medida que por entre as labaredas líamos as inscrições, de dentro dos túmulos nos vinham gemidos. De repente vemos uns esqueletos que se erguiam clamando. A injustiça tinha sido tão grande e tão fundo lhes calara na alma que no seu derradeiro refúgio, há milhares de anos, ainda não podiam esquecer as suas ânsias...
Como já citado, em No Hospício, ao mesmo tempo em que a mística é predominante, há uma forte tendência pelos ideias anarquistas. Àquela altura, a Primeira República brasileira já havia decepcionado muitos dos seus apoiadores de primeira hora. Rocha Pombo, muito provavelmente, foi um desses desiludidos, já que, desde 1879, quando fundou, em Morretes, o jornal O Povo, declarava apoio ao Republicanismo. Diga-se que grande parte dos simbolistas foram republicanos, mas se decepcionaram com os rumos autoritários que o governo tomou; um dos poucos que optaram por um rumo divergente foi Dario Vellozo, cujo soneto “Novo Pendão” (escrito em 1892) é uma declaração de apoio ao “alto estandarte do Socialismo”.
O narrador, em No Hospício, discute a criação de uma Cidade Futura, baseada na construção de vilas e na divisão igualitária do trabalho. Cassiana Lacerda Carollo resume bem o ideal discutido na obra: “O regime das Vilas seria baseado na obrigatoriedade de trabalho e na equipolação do ofício. Com o aumento da produção imaginava o autor da Cidade Futura que o regime de trabalho seria de 2 horas e não de 10 horas por dia. Uma vez aliviado do trabalho de subsistência, cada um poderia cuidar da vida superior: Reduzidas as horas de trabalho as pessoas poderão viver, dirá o narrador. (...)”, mas o essencial está na característica anárquica do lugar: “Também estariam abolidos os impostos, pois não haveria propriedade individual: Não se reconhecerá autoridade, mas sanção coletiva.”
Muito comum tornou-se a discussão desde o início do Século XIX, diante das mudanças urbanas das grandes cidades – dessa Belle Époque transfigurante – das possibilidades de adaptação dessas urbes para a densidade populacional de então. A maior parte das soluções, é claro, era isolante: não retirava das elites um centímetro dos privilégios habitacionais; previa, porém, a construção de falanstérios (como Charles Fourier defendia), que conservação da pobreza à parte, assemelham-se, de certa forma, ao conceito de construções populares contemporâneas. Não é de se estranhar, portanto, que Rocha Pombo, um historiador, simbolista à Huysmans, tenha declarado como sua inimiga a burguesia (no sentido mais exato da palavra) e, a partir daí, tenha moldado uma sociedade utópica com produção própria e com finalidade, principalmente, de elevação espiritual, bem longe da produção burguesa e de uma crença niilista. Des Esseintes, personagem de Às Avessas, colocava o burguês como o algoz principal da verdadeira arte, já que, embora tivesse dinheiro, jamais teve educação cultural para colocá-la em primeiro plano. E para Rocha Pombo, a situação no Brasil era exatamente a mesma.
No Hospício simboliza, de certa maneira, as partes mais relevantes da produção intelectual de Rocha Pombo: poeta, romancista e historiador. Mas, acima de tudo, representa o ápice dos romances simbolistas brasileiros em uma época em que, basicamente, o Naturalismo e Realismo reinavam como opções únicas para o gênero. Não é de se assustar, diante da subvalorização do Simbolismo na literatura brasileira, que a obra de Rocha Pombo esteja em um quase olvido e que, daquela época, só se ouça dos mesmos autores e obras. Fileto, no decorrer do livro, confessou ao narrador que foi internado no hospício por seu próprio pai porque se diferenciava totalmente dos padrões “aceitáveis para a época”; o hospício, um livro que causa estranhamento por ser basicamente vários livros em um, até hoje, trágica e curiosamente, ainda não saiu de seu claustro.