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Dialeto do Lodo - Rodrigo Madeira

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4 peças para ferrugem

  
a)

     parafuso
    
não de rosca soberba
para chapas de metal.
    
segurou quadros? fixou
     sextavado o esqueleto da cama?
     emprenhou porcas, coadjuvou
     dobradiças e roldanas?
    
     um tendão de aço
     que não vale
     nada sobre nada
    
existirá
     sem qualquer bênção de deus
     centenas de anos


  
b)

skol cerveja pilsen
beijou os lábios da mulher
no verão de 85?
   
as axilas do tétano
cheiram a ferro de sangue.

esta veio dar na praia.

quando o sol bate
no único cm²
ainda brunido e intato
da folha-de-flandres

brilha mais que diamante

c)
 
      quem já viu
      um arpão
      oxidado
      no meio
      de uma cidade
      sem praias?

  
d)
 
        o quarto objeto
        é um poema.

        não costumam ser
        inventariados em capões
        ou ferros-velhos
        comidos de ferrugem
        os poemas.

        mas ninguém o leu
        ninguém
        sequer o escreveu
baldio
sem o que ter sido ou dito
        ninguém diz:
                              um poema!
       
        mais agora
que a lepra
do metal o faz
 – no chão vermelho
ervas rasteiras do alfabeto –
ainda mais patético        

e ilegível



newton da costa

  
nada é tão raso
como a página,
acima da
credulidade
da gramática.

uma con
              tradição,

paraconsistente
espanto:

                         o peixe vivo
                         (ágil furtivo)

                         na página

é um peixe morto

                         boiando
      
  
2

como pode na palavra,
sem profundidade física
(sequer a poça),

caber     abismo
              queda      (?)  
              altura

                                         por ex.:     morte
                                                                          vida
                                                       sono
                                     perfume


   

ex-votos

                                                                                 
francisco, tentação de clara,
a clara tentação de chico.                    
e o fato de, se amando,                         
não se amarem, mais                             
que a pobreza extrema, mais
que as ceias cobertas de cinzas,
foi-lhes o supremo sacrifício.*
                                                                     
                                                                      *[1212 d.c., por aí,
                                                             sob o céu lápis-lazúli de assis.]

hoje, não: hoje tudo é
permitido. deus é pai, deus é mãe
e deus é filhos.

os dois irmãos e amigos,
os dois jograis de deus em deus unidos
amam-se enfim dum amor físico
– no chão, nas matas, nos catres
de palha e feno e lama, nas grutas –,
amam-se além das reticências e das culpas,
na cama infinitamente estreita
do impossível. 



borgeanas
                  
                  
I - AS RUÍNAS CIRCULARES

não morreu
(para morrer é preciso
que se permaneça vivo
verbo que pleno se conjuga apenas
no presente do indicativo)
baldeou-se, pois não, a um tempo mítico
 noite unânime
ou amanhecer sem pássaros
tarde sem moscas e formigas
em que um homem é todos os homens
uma era é todas as heras
sobre um muro de ruína.
não deixa mulher nem filhos
gado apartamento livros
lega propriedade vazia, gordurosa
memória pegada às línguas
pálpebras dígitos gengivas
daqueles que (preciso fora reconhecer
um corpo) o conheciam.


II - O IMORTAL


morrer não é fácil,
mas se lhe negam
os deuses
a humanidade acesa
e trêmula,
direito universal
à própria morte,
inventário de amor
e medo
circunscrito ao tempo,
o imortal, estúpido
de tão eterno,
esgotadas as vidas
possíveis e desejáveis,
senta-se sobre a pedra,
ali fica quase
sem memória – quem fui,
homero? – salinizando
os tornozelos
por séculos
e séculos,
fica
ele mesmo
cristalizado, pedra caso
pedra respirasse,
até que vento e
água dispersassem
sua carne feito areia





dialeto do lodo

        
                               p. ivan justen

  
é mesmo possível que
os pulsos cortados da chuva
ou um sol suicida
nos mofem a língua e
apenas permitam,
em meio ao delírio,
à preguiça das flores,
o dialeto do lodo.

mas é certo que ainda,
à noite em veredas,
empiolhados de estrelas,
nós cantaremos:

como não canta o pássaro,
como não canta a máquina,
como não canta a morte,
nós cantaremos.

e de novo.

como só canta o Tempo
e no Tempo o fogo,

o barítono brutal
que há no fogo.



* por ex.: como canta, ao meio-dia, meia dúzia de moscas.


Rodrigo Madeira
 
Ilustrações: deviantART

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