4 peças para ferrugem
parafuso
não de rosca soberba
para chapas de metal.
segurou quadros? fixou
sextavado o esqueleto da cama?
emprenhou porcas, coadjuvou
dobradiças e roldanas?
um tendão de aço
que não vale
nada sobre nada
existirá
sem qualquer bênção de deus
centenas de anos
b)
skol cerveja pilsen
beijou os lábios da mulher
no verão de 85?
as axilas do tétano
cheiram a ferro de sangue.
esta veio dar na praia.
quando o sol bate
no único cm²
ainda brunido e intato
da folha-de-flandres
brilha mais que diamante
c)
quem já viu
um arpão
oxidado
no meio
de uma cidade
sem praias?
d)
o quarto objeto
é um poema.
não costumam ser
inventariados em capões
ou ferros-velhos
comidos de ferrugem
os poemas.
mas ninguém o leu
ninguém
sequer o escreveu
baldio
sem o que ter sido ou dito
ninguém diz:
um poema!
mais agora
que a lepra
do metal o faz
– no chão vermelho
ervas rasteiras do alfabeto –
ainda mais patético
e ilegível
newton da costa
nada é tão raso
como a página,
acima da
credulidade
da gramática.
uma con
tradição,
paraconsistente
espanto:
o peixe vivo
(ágil furtivo)
na página
é um peixe morto
boiando
2
como pode na palavra,
sem profundidade física
(sequer a poça),
caber abismo
queda (?)
altura
por ex.: morte
vida
sono
perfume
ex-votos
francisco, tentação de clara,
a clara tentação de chico.
e o fato de, se amando,
não se amarem, mais
que a pobreza extrema, mais
que as ceias cobertas de cinzas,
foi-lhes o supremo sacrifício.*
*[1212 d.c., por aí,
sob o céu lápis-lazúli de assis.]
hoje, não: hoje tudo é
permitido. deus é pai, deus é mãe
e deus é filhos.
os dois irmãos e amigos,
os dois jograis de deus em deus unidos
amam-se enfim dum amor físico
– no chão, nas matas, nos catres
de palha e feno e lama, nas grutas –,
amam-se além das reticências e das culpas,
na cama infinitamente estreita
do impossível.
borgeanas
I - AS RUÍNAS CIRCULARES
não morreu
(para morrer é preciso
que se permaneça vivo
verbo que pleno se conjuga apenas
no presente do indicativo)
baldeou-se, pois não, a um tempo mítico
– noite unânime
ou amanhecer sem pássaros
tarde sem moscas e formigas–
em que um homem é todos os homens
uma era é todas as heras
sobre um muro de ruína.
não deixa mulher nem filhos
gado apartamento livros
lega propriedade vazia, gordurosa
memória pegada às línguas
pálpebras dígitos gengivas
daqueles que (preciso fora reconhecer
um corpo) o conheciam.
morrer não é fácil,
mas se lhe negam
os deuses
a humanidade acesa
e trêmula,
direito universal
à própria morte,
inventário de amor
e medo
circunscrito ao tempo,
o imortal, estúpido
de tão eterno,
esgotadas as vidas
possíveis e desejáveis,
senta-se sobre a pedra,
ali fica quase
sem memória – quem fui,
homero? – salinizando
os tornozelos
por séculos
e séculos,
fica
ele mesmo
cristalizado, pedra caso
pedra respirasse,
até que vento e
água dispersassem
sua carne feito areia
dialeto do lodo
p. ivan justen
é mesmo possível que
os pulsos cortados da chuva
ou um sol suicida
nos mofem a língua e
apenas permitam,
em meio ao delírio,
à preguiça das flores,
o dialeto do lodo.
mas é certo que ainda,
à noite em veredas,
empiolhados de estrelas,
nós cantaremos:
como não canta o pássaro,
como não canta a máquina,
como não canta a morte,
nós cantaremos.
e de novo.
como só canta o Tempo
e no Tempo o fogo,
o barítono brutal
que há no fogo.
* por ex.: como canta, ao meio-dia, meia dúzia de moscas.
Rodrigo Madeira