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[as guerras búdicas: o sutra do crisântemo de plástico] por alexandre guarnieri - parte 7

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de repente ele ouviu a voz dela/ ela disse: "eu me matei"/ e assim/ como se estivesse acabando/ tudo recomeçou/ porque toda verdadeira iluminação deve emergir da mais profunda escuridão/ porque a voz dela vinha de algum refúgio longínquo/ e ela não estava mais presente/ mas à distância/ e de tão longe/ como que dopada de tranquilizantes/ e mesmo assim ela disse/ "eu me matei"/ e era sim a voz dela/ e as palavras soaram tão familiares que demoraram a se completar entre os seus silêncios íntimos/ fragmentos de sons tão pequenos resvalando uns nos outros/ se alinhando diante da consciência/ no ouvido interno/ e daí para o cérebro/ demorou até que seus ombros pesassem/ ainda um pouco mais para que seu significado adentrasse o eco dos salões empoeirados de algum entendimento mais completo/ e súbito aquilo o atingiu/ uma bala de fuzil/ uma machadada rachando os ossos mais óbvios/ flechas certeiras contra o peito/ como que atingissem/ perfurando a superfície/ o seu recheio/ de silêncios/ era o complicado solilóquio de Maya bem diante de seus olhos/ e a vagarosa voz dela veio acompanhada de um odor estranho/ de um sabor acre sentido por detrás das papilas/ um amargor formado atrás da língua/ a cada sílaba ele engrossava a nódoa alastrando um sabor quase salgado mas não exatamente de sangue/ nem tão espesso quanto o plástico ou a cera do dentista repisados na gengiva/ um gosto de seda podre/ mascasse arame farpado/ a ferrugem crocante cortando a língua em mil pedaços/ e um sabor arruinado de tão desconcertante e seco quanto os perfumes da decepção e do medo invadindo a narina/ um incenso negro/ a densa fumaça daquela revelação contra o olfato despreparado/ e aquilo ficou soando em eco/ resvalando no oco do crânio/ de um lado a outro/ num ping-pong cego, no cérebro/ "...eu... eu... e... me... me... mat... mate... matei..."/ e a impressão era a de que séculos tivessem passado/ mas a frase em si não era da qualidade que passa/ mas daquela que pára, reverberando seus espinhos/ seus resquícios/ seus cílios postiços/ suas garras de esporões doloridos/ depois veio uma cortina cinza/ bem fina/ cobrindo a visão, ainda acompanhando os sons, em eco, enfraquecendo a pressão arterial ante a surpresa/ o trauma/ o choque/ o desequilíbrio estremecendo o corpo/ era tarde ele estava sozinho/ era tarde/ havia caído/ na teia/ era tarde/ da aranha/ era tarde/ ele já sabia/ era tarde/ e veio um frio na espinha/ terrível/ e as visões/ era tarde demais para intervir/ pra tentar impedir/ pra fazer diferente/ era uma música sinistra soando junto/ uma ópera trágica a tentativa de extinguir a vida/ de eliminar de si a vítima/ a faca na mão/ era tarde/ ele sabia/ e lidar com isso exigiria um novo signo no zodíaco/ outro planeta no sistema/ um outro sentido além dos nossos cinco, (ou seis?)/ era preciso mais que um "isto ou aquilo" (teria sido)/ um outro ritmo/ que o dicionário tivesse mais um verbete/ e de repente não havia meios pra lidar consigo mesmo/ depois de ouvir aquelas três palavras atávicas/ afiadas como navalhas e fincadas na carne daquela tarde/ talvez fosse já alta noite lá fora/ porque dentro do invólucro do prédio todo o tempo era de uma luz artificial/ talvez ela tenha dito outras frases/ talvez todas tenham sido soterradas por esta que ficou/ como chumbo derretido escondendo e apunhalando o resto do discurso/ talvez ela tenha contado tudo/ culpando-o por tudo/ mas isso ele jurou não ter ouvido/ ele jurou/ (ou ouviu? um sussurro escondido por baixo das outras palavras e entre elas, se esgueirando)/ talvez ela tenha contado tantos outros detalhes inconfessáveis do ato/ os detalhes mais práticos/ da escolha dos instrumentos/ do local da casa/ do sofá da sala/ dos comprimidos/ da faca (de cozinha)/ de como os piores pensamentos turvaram seu julgamento/ e de como cada ideia escolhida era uma nova migalha de pão no chão da floresta onde joão e maria se perderam para sempre/ no dobrar das dúvidas e de certezas/ umas superando às outras/ como num jogo de dados/ como num castelo de cartas/ o jogo de azar/ uni duni tê o escolhido foi você!/ o corte/ a dor/ o sangue/ o pedido de socorro/ o resgate/ o dia seguinte/ a dor interminável do dia seguinte/ e de como, inexplicavelmente pôde sobrevir... o reviver/ o retorno à superfície do que está vivo/ permitir-se o retorno ao lar/ porque toda e qualquer filha pródiga (Kali, Shakti) só poderá retornar/ após o pesaroso exílio auto-imposto/ até que finalmente se ilumine/ num flash/ num piscar de leds/ no estalo do flyback... pois ligado o plasma da tv da sala, ela ressurge sem medo, sem cerimônia, é Fênix inflada: "Ah Maya, querida Maya! sente-se aqui de novo! venha assistir conosco a novela das oito!"












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PARTE 1

PARTE 2







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Alexandre Guarnieri (carioca de 1974) é poeta e historiador da arte. Atualmente pertence ao corpo editorial de mallarmargens e integra, com o artista plástico, músico, ator e poeta, Alexandre Dacosta, o espetáculo mutante [versos alexandrinos]. "Casa das Máquinas" (Editora da Palavra, RJ), de 2011, é seu livro de estreia e está disponível aqui. Seu próximo livro, "Corpo de Festim" (Confraria do Vento), será lançado em 2014. Email.





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