Ilustração: deviantART
CONSTELAÇÕES
"Você é mesmo muito pessimista", dizia meu pai.
"Não é pessimismo não, pai, é só ciência: a maioria dessas estrelas está morta, não existem mais, a luz que vemos está viajando pelo espaço há milhares de anos." Daí ele ria, incrédulo. E era lindo aquele negro imenso sorrindo como uma criança, a boca cheia de uns dentes branquíssimos.
Hoje eu penso na névoa, na noite se adensando, nos cães, nos tiros, nos guardas, no terror, meu pai nadando afobado, escapando do presídio da Ilha, pensando em mulheres, cachaça, pensando talvez em mim. Sing Sing, Alcatraz, Ilha Grande, não importa. Importa meu pai paralisado de medo, ou seriam câimbras? O mais certo as duas coisas. Meu pai arrastando, enquanto afunda, mulheres, manhãs, cachaça, arrastando talvez a mim. Não estava certo, a meu pai, descobrir que o mar é sem fim justo naquele instante.
Eu penso na pele escura do meu pai, na pele escura da noite, na pele escura do ventre profundo das águas. Três peles frias. E sobre as peles o brilho ilusório das estrelas. Uma miragem, ambos. E me pergunto se, no último instante, meu pai se lembrou da verdade acerca das estrelas – eu lhe tirando a última coisa bela.
Lembrou-se, meu pai?
(Da memória ele me sorri - estrelas ao alcance de minhas mãos.)A CARTOMANTE
Para Henriette Efenbeguer
Sozinha em sua tenda, a Cartomante prevê que dentre em breve conhecerá um homem, e que com ele se casará e se arrependerá amargamente. Ele arranjará outras mulheres, chegará sempre bêbado, reclamará da comida e às vezes lhe baterá. A Cartomante prevê que a boemia do homem a fará perder noites de sono e chorar lágrimas de sangue.
Lá fora alguém bate palmas. É o homem. A Cartomante ajeita o cabelo, manda-o entrar, despe o roupão e lhe diz: “eu sou sua”.
UMA HISTÓRIA PARA A HORA DE DORMIR
Para Eloí Bocheco
TUDO aquilo que habita nosso sonho, somos nós: um jacaré morto, boiando amarelo e cinza de barriga para cima numa rua alagada, um homem gordo que abaixa a porta metálica-barulhenta do armazém, a prostituta sonolenta voltando sozinha para casa às quatro da madrugada, não importa – Tudo aquilo que habita nossos sonhos é nossa culpa. Então eu me pergunto se na vida também não é assim: tudo um sonho. Deus sonhando o que existe. Cada um de nós sonhando a própria existência. Sou caminhoneiro, portanto, entendo de dormir acordado e de sonhos.
Diferente de avião, caminhão não tem piloto automático. Mas eu tenho. Dormir ao volante é o que eu mais faço. Sonhos inteiros, com começo, meio e fim A ponto de vez ou outra não saber que chão estou pisando: o real ou o onírico. Eu sei que a sorte não vai durar para sempre (nem em sonho), mas assim é a vida de quem atravessa as estradas deste país esburacado.
Quando terminei de abastecer e dei com a mocinha à saída do posto de gasolina, parada na beira da estrada com aquele vestido ralo no meio do frio à boca da noite, poderia jurar que estava sonhando. E se era assim, não haveria nenhum mal em abrir a porta e convidá-la a entrar. Só mesmo em sonho – hoje em dia, é mais seguro transportar qualquer tipo de tóxico do que ser pego em companhia de uma menor.
Obrigada, disse a mocinha. Não devia ter mais de quatorze, embora já fosse bastante visível (mesmo à luz mortiça da cabine) o imenso estrago que a vida tinha feito nela.
- Para onde você está indo?
- Florianópolis.
- Deus do céu! Você tem muito chão até lá. Você não está com fome?
- Não.
- Tem biscoito no porta-luvas. Pode pegar. Minha mãe me ensinou que é falta de educação rejeitar comida.
- Obrigada.
- Biscoitos de chocolate são o meu fraco. Sou doido por chocolate. Se não tiver chocolate para onde a gente for depois que morrer de nada terá valido a vida. Ou a morte.
Ela riu. - Que engraçado, ela disse.
- O quê?
- O cabelo do senhor. Está todo branco. Mas o senhor é moço ainda.
- Nem tanto. Já tenho quarenta e quatro. Engraçado mesmo é que até um tempo atrás eu era professor de português. Agora estou nessa. A vida é assim. Você quer ser o quê na vida?
- Enfermeira.
- Meu sonho era ser diplomata e viajar o mundo todo. É. Cada um realiza o sonho que pode. Debaixo do banco tem uma sacola com um cobertor. Pega. Você não vai dar conta do frio com esses braços nus.
O caminhão quebrar não é nada. Para quem guia, os piores pesadelos são os assaltos, as estradas enlameadas e as barreiras policiais. Eu sempre sentia um frio na barriga quando via as luzes vermelhas das barreiras, não importava o tipo de carga. A meu lado a mocinha parecia dormir, mas foi só estacionar para ela abrir os olhos e ficar alerta como um gato.
- Boa noite, cumprimento.
- Documentos, diz o polícia, insistindo em manter a lanterna em nossas caras.
- E a mocinha?
- Minha filha. Esperança. Dá boa noite para o policial, filha.
- Boa noite.
O policial checa os documentos, a carga, e nos manda seguir.
- Nos saímos bem, não foi? Meu nome é Ulisses. E o seu?
- Heloísa.
- Heloísa... Deve ser de origem grega.
- Odeio ele.
- Se eu não gostasse do próprio nome, adotaria outro. Sem problemas. Tem gente que acredita que um nome pode mudar a sorte de uma pessoa; eu digo, enquanto o caminhão desliza suave pela noite fria de julho.
À luz da manhã a realidade muda: somos obrigados a parar diante de uma imensa fila de caminhões presos num atoleiro. Sob uma chuva fina, homens preparam comida, levam à boca canecas fumegantes de café, mate, cigarro. Eu acho a parada bem-vinda. Estava cansado. Dando um braço por um cochilo. Vou descer, ela disse. Pedi que esperasse um pouco. Peguei no maleiro uma sacola de supermercado, e joguei dentro um cobertor, um creme dental, um sabonete, dois pacotes de biscoito.
- Obrigada, disse ela. Depois hesitou um pouco e disse: Gosto do meu nome novo - E sorriu. Um sorriso de dentes pequenos, incrivelmente perfeitos.
- Tomara que ele lhe traga sorte, Esperança.
Pelas frestas dos olhos, antes de cair no sono, vejo-a se equilibrar na ponta dos pés, o par de sandálias numa mão, a sacola na outra; uma chuva fina lhe encurvando os ombros – mesmo assim ela é graciosa como um milagre, um sonho bom – até que deixa minha linha de visão; mas continua. Porque há estradas que viajam para dentro e estradas que viajam para fora – e algumas estradas, como alguns sonhos, enovelam-se, mudam, tomam novas formas, meandros e sinuosidades, mas não têm fim.
Walther Moreira Santosé autor de Um certo rumor de asas (Romance, Prêmio Casa de Cultura Mário Quintana e Fundação Cultural da Bahia); Ao longo da curva do rio (Novela, Prêmio Xerox do Brasil, 2001); Helena Gold(Novela, Finalista Prêmio Portugal-Telecon); O metal de que somos feitos (Contos, Prêmio Pernambuco de Literatura) e O ciclista (Romance, Prêmio José Mindlin, Prêmio Cidade de Curitiba e um dos 10 melhores livros de 2008 pelo Prêmio São Paulo de Literatura), entre outras obras. Integra as antologias Wirsind Barreit (editora Lettretage) e Kürzestgeschichten aus Brasilien (editora DTV), ambas publicações alemãs que reúnem os autores que mais se destacaram no Brasil na última década.