Quantcast
Channel: mallarmargens
Viewing all articles
Browse latest Browse all 5548

6 poemas para um afogado - Julia Mendes

$
0
0

 

insistência de azuis

quanto ao azul das fotos tristeza loucura qualquer percepção arcaica do que a alma deixa noites bonitas o azul hedônico a vida em si deteriorando pela manhã manchas de sol acabei com tudo minha boca pingando intensa saliva devagar não desmanche a paisagem trovoadas coro de imagens para lembrar por entre os azuis pelas vestes os azuis movo o céu por dentro das árvores




no mar que eu ainda caibo


nudez
invólucro de beleza e tristeza
água coxa/rasa sobre o vale
verde-rio-cor-de-bronze
no mar que eu ainda caibo
afogameto
nitidez
dor espinha ombros contorcidos
ressuscitei devagar ainda chorando
– sumi, quase nada, mas sumi –
endossei o corpo para baixo
tão raso era o rio
via pedras
contorcidas
rastejavam
metade nuas
assim
como quem as explorasse
o sol batia nas montanhas
de vez em quando
curvava entre as árvores
            e este vale esquecido
            esta banheira de deus
            esta água rasa
mar-rio-culpa-afogamento

tudo o que temos agora
e que não será mais nada




o mesmo sol


perdurando à mesa
o chão e a sombra de chinelos

          uma crosta
deitada sobre a cova funda
do corpo

[deveria ter ficado também doente]

ser inesgotável
sair inesgotável

algo em mim
tinha ficado também
doente – como [uma doença]
inesgotável

o.plexo
fendia
sobre.a.carne.não tinha afeição pela morte [não me preparei para morrer]

sentia---até---as
pernas---envergarem
tecia cartas
            para o esquecimento

e o mesmo sol
            pendurando na garganta
para um lugar mais
curto
breve
súbito






vulto


“o luto entretanto
é
este estardalhaço de vivos”
Marcus Groza


lambi tua cara
com folhas mortas
festejei dentro
do meu pulmão impune
a tarde o rio as mordidas
acendi cigarros fiquei nua
ao choque térmico possível da morte
a única felicidade é verter – estraçalhar –
pasma ou ácida a acuidade da vida




a saudade


é o mar ausente
que só a lembrança
arrasta
um pouco de sal
para dentro do corpo





cortejo

sacramentada a desgraça do nosso encontro dias da puríssima domesticação hedônica respiro pouco corro comentando as várias faces de um demônio interno você quase não me espera porque já eu desfibrada quero me agarrar a qualquer coisa serei seus olhos como um poste de luz que acende por dentro já me enfio nesta cama lotada de cigarros respiro pouco quer então ver a noite eu pergunto ou a lua que pode se ver entre as árvores entre as janelas entre os parques ou nesses teus glóbulos sujos os meus glóbulos sujos também manchados sintaxes cultuo pequenos organismos nunca serei um pássaro não quero um conto curto frases ásperas como se nada acabasse não quero a violência mas um seacabar tristinho verde perto o estrume agora para o mundo sinto saudades dos dias em que eu mesma me enterrava




 Ilustrações: deviantART



Autora dos livros de poemas Desde quando deserto (Patuá, 2014) e Para um corpo preso no guindaste (Patuá, 2012), Julia Mendes nasceu no dia dois de fevereiro, no Rio de Janeiro.
 








Viewing all articles
Browse latest Browse all 5548