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2 POEMAS DE LUCAS BRONZATTO

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O Acrobata do Semáforo
Para Carlos Augusto Lima


eu sou o acrobata do semáforo
e do banco da frente você finge que não me vê.
dou discretas batidas em seu vidro
e você se contorce, agarrando-se a um cinto
que te livra do mal e te salva sempre que você freia
bruscamente qualquer início qualquer indício de culpa
e responsabilidade pelo que vê.
deixo para os segundos finais do meu espetáculo,
para que leve embora, meu rosto
triste, miúdo de quem teve
qualquer lugar para chegar arrancado do caminho.
leve-o para onde deve ir. seu desejo de comprar
aquele fogão com acendedor automático
aparentemente queima meus olhos suplicantes
e meu grand finale não afeta seu trajeto.
apenas te vejo partir, acelerando    
provavelmente em direção às gotas
de seu calmante químico e sua nova tela
de cristal líquido, que liquefazem seus dias
e te deixam com essa estúpida sensação
de que sem pílulas e produtos perecíveis
você talvez corte os pulsos
cuidando para não sujar o estofado novo.
eu sou o acrobata do semáforo e do seu sofá
você não me vê mais. respiro agora o ar
que está fora deste chassi quase blindado
que nos separa. faço minhas acrobacias
no seu vazio interno, aquele que você não quer ver
e que os donos de caixas eletrônicos
e de empresas de nomes estrangeiros e alfanuméricos,
publicitários e jornalistas vendidos
não querem que você veja.
sou parte desse enigma, dessa esfinge
que silenciosamente atormenta sua paz fictícia.


fictícia, diga comigo: fictícia.





Curriculum Verax

Eu é um outro (Rimbaud)


Desculpe não ter anexado uma foto
é que às vezes a gente vê mais com a imaginação
do que com os olhos
Meu rosto é comum
barba óculos cabelo curto nariz de batata olhos atentos

Tenho os sentidos aguçados
bastante permeáveis ao sofrimento do mundo
Vivo levando para o travesseiro dores que não são minhas
poemas que não chego a escrever

Ficarei muito feliz se puder trabalhar de chinelo
bermuda de surfista e camisa de time de futebol
ou qualquer outra roupa que não precise passar

Esse diploma de farmacêutico que vai anexo
conferiu-me um grau enorme de indignação
com a indústria farmacêutica e suas táticas de colonização
Resisto a uma dipirona como criança a um xarope

Minhas melhores referências não virão dos patrões
sempre acabo deixando transparecer
a indigestão que engolir hierarquias me causa
Como referências bibliográficas
cito os livros que ainda não li
e algumas tirinhas da Mafalda protagonizadas pelo Felipe

Da infância ligada no videogame
carrego essa ideia estúpida de invulnerabilidade
traduzida em convenientes anestesias na vida adulta
mas carrego também a capacidade de enxergar um continue
sempre depois de qualquer game over

Passei da fase de viver jogando
por isso não conte comigo para jogos de poder
Ambição e orgulho não foram salpicados na minha argila
Mas se ainda assim quiser jogar, te alerto de antemão
que sentirá primeiro aquela raiva infantil
que a indiferença causa nos adultos
depois colocará um chapéu de burro no meu peão
e me deixará rodadas e rodadas sem jogar
Ah, em jogos desse tipo meu peão é o branco
está sempre do lado dos outros peões
e leva dentro meus sonhos vermelhos
bem maiores que qualquer mesquinharia

Você talvez dirá que sendo assim
caminho rumo a lugar nenhum
e é exatamente lá que eu quero chegar
Se as pessoas fascinantes que conheci que são assim
e as que ainda não conheci
também têm como destino esse lugar chamado nenhum
quando chegarmos todos lá
vamos colocar na entrada uma placa
feita à mão com as palavras
bem vindo a um lugar onde gente é tratada como gente
vamos hastear nossas bandeiras
e construir no meio das árvores casas feitas de sonhos
tornados realidade



fotos: Mauro de Souza



*    *    *


Lucas Bronzattoé um rapaz latino americano vindo do interior de São Paulo (Mogi Mirim – SP) que escreve poemas e nas horas vagas trabalha na área da saúde. Encontra seus versos nas contradições do cotidiano, nas violências, resistências e impaciências diárias, nas dores e nas cores do mundo. Lucas publica desde 2011 seus poemas em um blog e em fevereiro de 2014 lançou seu primeiro livro, Cantos Tortos [do qual vieram estes poemas], pela Dobra Editorial. Além disso, teve poemas selecionados no concurso de poesias da editora Big Time, publicados na antologia “Versos Soprados pelos Ventos do Outono”, de 2012 e participou da coletânea “Vinagre – Uma antologia de poetas neobarracos”, da Edições V de Vândalo, em 2013. Atualmente reside no Rio de Janeiro. 





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