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"TENENTE U", POR MARCOS BASSINI

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Tenente U, publicado semanalmente na página Compartilhe Epígrafes, no Facebook, é uma mistura dos antigos seriados de ficção científica, mais especificamente o Jornada nas Estrelas, com o livro Cidades Invisíveis, de Ítalo Calvino. Um Diário de Bordo escrito, não pelo capitão - imobilizado por algo que não temos certeza (uma doença, uma depressão, a morte?) - mas pela tenente que, em determinados episódios, não esconde seu amor por seu superior.

Tenente Ué a letra U de um Glossário que já tem Senhorita K (lançada pela Editora Patuá), Don J (publicado semanalmente no site Confraria dos Trouxas) e Profeta G (do Livros em Construção, blog do jornal O Dia)







BAG:LE, O PLANETA ONDE NUNCA SE CHEGA

Diário de Bordo, Data Estelar 16411MB

A sensação, para quem começa a aterrisar em Bag:Le, é que não se consegue chegar lá nunca. 
Talvez por sua gravidade negativa, só a muito custo a nave rompe a estratosfera e, mesmo assim, mal os visitantes colocam os pés já se veem praticamente sendo expulsos, catapultados junto com seu transporte. 

Tanto que, muitos dos que partem, vão embora mal lembrando se em algum momento efetivamente chegaram. 

A certeza de que lá estiveram só vem no dia em que, sei lá, caminhando por uma estrada qualquer de seu planeta natal, se veem assaltados pela lembrança de uma bela estrada florida daquele estranho planeta, onde passearam iluminados por um sol fosforescente. Ou quando, ao se casarem, a cerimônia é atrapalhada pela lembrança de um belo(a) bag:leano(a) com quem viveram uma breve porém tórrida experiência afetivo-sexual. 

Quando têm o primeiro filho, é fato: dificilmente olham para a criança, dali em diante, sem lembrar dos parques de Bag:Le, onde as brincadeiras infantis são tão interessantes que até os adultos e idosos são impelidos a participar. 

Na velhice, quando os amigos começam a partir, recordam com saudade dos grandes laços formados naquela breve estadia e se perguntam, derramando uma lágrima, por que deixaram de manter contato. 

E só deitados no leito de morte, quando lembram dos passeios pelos felizes cemitérios bag:leanos, onde, em vez de choro, escuta-se a algazarra dos parentes, os saraus anarco-poéticos, os shows de músicas hipno-dançantes, enfim, só aí percebem que Bag:Le, o planeta onde nunca se chega, é, na verdade, o planeta de onde jamais se consegue ir embora.






LOT, O PLANETA ESTATUÁRIO

Diário de Bordo, Data Estelar 16913MB

Talvez não seja coincidência este planeta ter o mesmo nome daquele cuja mulher, ao olhar para trás, contrariando divinos conselhos, se transformou em estátua sal.

Em Lot, absolutamente todos os habitantes se parecem com esculturas vivas, olhar rígido frente as bilhões de telas daquele planeta que possui os melhores programas de entretenimento do universo. 

Não dá para negar: lá os apresentadores são realmente divertidos, os games são emocionantes e as notícias são interpretadas de um jeito tão inusitado que chegam a ser mais espetaculares que a própria tragédia que divulgam.

Quando não estão em frente à tela, os Lotianos trabalham sorrindo, ligados em programas radiofônicos com locutores hilários (até os analistas políticos são formado em escolas de circo) que divulgam sempre o melhor da música interplanetária. 

Os únicos habitantes de Lot que não estão paralisados diante dos programas são aqueles que estão nos bastidores, esfaqueando um ou outro para tornarem-se os novos protagonistas e ganhar uma efêmera fama universal.

Difícil saber, neste extraordinário planeta, os que estão mais escravizados à rigidez absoluta.






MNEMM, O PLANETA DOS GIGANTES DE PEDRA 

Diário de Bordo, Data Estelar 16419MB

Neste planeta de gigantes de pedra raramente se encontrava algum deles caminhando pelos jardins hexagonais ou pelos bosques escarpados ou entre as florestas das amendoeiras ruivas porque, por serem de pedra, não se sentiam hábeis para se locomover e, não raro, os mnemmonianos morriam no exato local em que nasceram e, não por outro motivo, usavam a mesma palavra para expressar “casa” e “sepultura”.

Não costumavam comer nada que não fossem as pequenas plantas que por ali cresciam (ou algum animal desavisado que passasse por perto (cru, é claro (a não ser que morassem debaixo de uma árvore e decidissem fazer uma fogueira (com galhos que (por acaso) tivessem caído com o vento)))).

É difícil adivinhar como evoluirão a partir de agora que fizemos contato, mas foi emocionante ver as feições de espanto quando, ao tocarem nossa pele, apertarem nossa carne, compararem nossa altura, descobriram que são feitos da mesma matéria e não são assim tão mais altos que nós.

Gosto de pensar que os habitantes daquele planeta tenham compreendido que pétrea era apenas a sensação de que jamais poderiam ir além.






OS ASTRONAUTAS DE LILITZZZ

Diário de Bordo, Data Estelar 15401MB

Não é difícil explicar por que as escolas preparatórias de astronautas de Lilitzzz tinham pouquíssimos inscritos: naquele planeta qualquer viagem espacial era um caminho sem volta.

Desculpem, não fui clara: voltavam para Lilitzzz, mas nunca para a época em que habitavam, e sim para o passado. Quanto mais tempo longe do solo, aliás, mais voltavam no tempo.

Houve um caso, inclusive, em que o recordista de permanência no espaço (que milagrosamente conseguiu se safar da morte ao ser ejetado da nave que se desintegrou em contato com a atmosfera) voltou para antes do surgimento das naves espaciais e só conseguiu a almejada fama e glória entre os companheiros do asilo de loucos.

Acabamos de observar a emocionante história de um lilitzzzano chamado L´illl, que voltou para uma época anterior ao seu nascimento e agora há pouco, já velho, teve uma parada cardíaca numa maternidade, olhando pelo vidro de um berçário.

Mal L´ill nasceu, L´ill morreu. 

Esta não foi a história de um natimorto: L´ill teve uma vida longa, próspera e partiu feliz.






O LAGO SALGADO DE SUMMADDIA

Diário de bordo, data estrelar 15395B

Era preciso esperar um ano inteiro por aquele dia específico em que o vento cessava por completo no planeta de Summaddia e o grande Lago Salgado passava a refletir quem nele se olhava como se fosse um espelho. A diferença é que o lago não mostrava exatamente aquele que estava ali, mas o que seria caso tivesse seguido o caminho oposto, tomado uma decisão diferente ou agido de outra forma num determinado momento da vida.

Apareceria mais magra, se tivesse conseguido levar adiante um regime. Com mais olheiras, se tivesse continuado naquele escritório cujo chefe era um tirano. Se mostraria autoconfiante, caso tivesse abandonado a tempo o ex-namorado que só atrasava sua vida. Estaria sorridente, se tivesse acreditado mais nos amigos.

Não era incomum os summaddianos não encontrarem ninguém ali, refletindo no lago. Nessas horas eles sentiam um alívio:

Não sabiam se tinha sido porque ficaram em casa durante um temporal, porque olharam para os dois lados antes de atravessar uma rua ou porque desistiram de encontrar um desconhecido virtual. 

Mas não tinham dúvida: naquele dia fizeram a coisa certa.





O CIRCO DE NAIR´UBB

Diário de Bordo, Data Estelar 15381B

Mal o apresentador falava, disfarçando a gagueira, Re-re-re-respeitável pú-público, os aplausos começavam.

A mulher barbada tinha um ligeiro buço. O engolidor de espadas usava um canivete retrátil. O mágico serrava ao meio a assistente (um manequim de cera).

Aplausos.

Os tigres estavam tão velhos que não saltavam e o domador, em nome do entretenimento, usava o arco como bambolê. O trapezista ficava no solo brincando com malabares. O palhaço - o malabarista fantasiado - não tinha a menor graça.

Mais aplausos.

A contorcionista se desculpava por seu problema de coluna. O mágico explicava que o coelho não saía da cartola porque havia sido capturado por uma águia que voava lá dentro.

Muitos, muitos aplausos.

Era aí é que entrava a grande atração daquele pequeno circo do planeta Nair´ubb: naquele auditório quase vazio, os poucos nairubbianos que se atreviam a comprar ingresso se perguntavam, num silêncio estupefato, quem fazia toda aquela algazarra.





*   *   *





Marcos Bassini é redator, músico, autor do livro de poemas "Senhorita K" (Editora Patuá) e apresentador do Haicai Combat, um slam de poetas em que a arma é o haicai e o juiz é um lutador profissional.

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