Nascido em 12 de agosto de 1954 em Recife, Pernambuco, Mário Luiz de Souza Lopes - ou simplesmente, Souzalopes - foi cedo para as terras grapíunas, onde chegou aos sete anos de idade, radicando-se em Itajuípe, Bahia. Sua infância e adolescência, passadas a beira do Rio Almada e no bucolismo do perímetro das Terras do Sem Fim, título do famoso livro de Jorge Amado (que retrata a briga pelas terras do Sequeiro Grande, em Itajuípe), formataram a base deste poeta, advogado e crítico literário, graduado em Direito pela antiga FESPI, hoje UESC nos idos de 1970. Era um devorador de livros e desde cedo manifestava, na verve poética, a irreverência e a aversão aos academicismos literários. Radicou-se em São Paulo desde 1982 até a sua morte, no primeiro semestre de 2012. Teve 3 filhos: Bárbara, em 1978, Iara, em 1980 e Luiz Guilherme, em 1984. Souzalopes publicou poucos livros, artesanais, distribuídos aos amigos. CONFIRA OS LINKS ABAIXO. Apesar de desconhecido na Bahia foi militante ativo em vários movimentos de contracultura, em jornais e revistas nacionais. Com o Grupo Cultural Cacoré, realizou um Seminário de Poesia na Capital Paulista. Souzalopes escreveu para a Revista Brasil Revolucionário, onde publicou o Manifesto do Partido Comunista em Cordel. Faleceu em 28 de maio de 2012. Os familiares e amigos fizeram, no dia 12 de agosto de 2012, na Vila Malva, uma Cerimônia Póstuma onde as cinzas de Souzalopes foram depositadas sobre as águas do Rio Almada, conforme o seu último desejo. Agora, a convite de mallarmargens, amigos pessoais, agregados e admiradores da obra poética de Souzalopes, até então conhecida por pouquíssimos, pretendem conferir mais visibilidade à produção do artista. Vale lembrar a iniciativa pioneira do amigo pessoal Eduardo Miranda*, que publicou eletronicamente parte da obra do poeta, de onde foi extraído o texto "ferro & carcoma", nunca publicado, que ganha versão simulada de um livro real. Souzalopes também deixou poemas esparsos publicados aqui e ali em revistas de papel e esquinas da internet e o volume inacabado "ÕIO", uma colagem de poemas dos livros anteriores. Também citamos a importância do Espaço Cultural Mané Garrincha pela preservação, reunião e divulgação da obra do poeta. A partir de hoje, mallarmargens pretende lançar luz sobre a obra deste artista, até então pouco valorizada, estudada e entendida pelo Brasil afora. Evoé Souzalopes!
OBRA DISPONÍVEL ONLINE [via ISSUU]
HÃGUA
FERRO & CARCOMA
PAU & PELO
MANIFESTO DO PARTIDO COMUNISTA EM CORDEL
* * *
UMA BIOGRAFIA IMPOSSÍVEL
UMA BIOGRAFIA IMPOSSÍVEL
Por Furio Lonza*
Difícil afirmar o que era mais importante na figura do poeta Souzalopes, pois ele tinha, em igual medida, diversas características que se completavam. Na poesia, por exemplo, jamais deixou que a forma sobrepujasse o conteúdo, embora fosse um impagável experimentador, provavelmente o maior deste país.
Como profissional, era um advogado de porta de cadeia com foco nos desvalidos e defendia homens e mulheres que tinham perdido a luta com a vida. Às vezes, sem receber um tostão.
No cotidiano, era um implacável crítico das futilidades e dos artistas que almejavam a fama sem que a merecessem. Mas sem rancor. Sempre com uma leve pitada de ironia e até benevolência, pois ele sabia que alguns poetas não têm a menor culpa de sua mediocridade.
Dentre todos os seus atributos, é inegável que o humor estava na linha de frente.
Pelo menos uma vez por semana, nos encontrávamos com o intuito prévio de fazer um balanço da vida e das artes em geral. Pelo fato de Souzalopes ser um grande fazedor de frases de efeito, não foram poucos os amigos ou inimigos ou conhecidos que se ressentiram com sua ofídica capacidade de distribuir apelidos. Mas, gozado, mesmo nisso, havia uma generosa dose de amor.
Lá pelas tantas, madrugada surgindo em seus momentos mais etílicos, vinha a pergunta (uma espécie de mote recorrente):
- E aí, Furio, alguma ideia para romance ou conto?
Modestamente e receoso, eu dizia que sim, tinha algo em vista.
Souza dava um tempo, bicava sua cerveja durante alguns segundos de uma paródica vigília e mandava a clássica pergunta:
- É melhor que Dostoievski?
Eu dizia que não sabia.
Em sua voz grave e tempestuosa, mas com uma ponta de ironia, o bardo da periferia tonitruava com seu carregado sotaque baiano:
- Então, não publique!
Souzalopes era assim. Cirúrgico. Acertava na mosca de olhos fechados e ainda jogava um pouco de ácido na ferida. Desnecessário dizer que, se os escritores de hoje seguissem esta máxima, teríamos bem poucos livros publicados. Um ou dois, se tanto, na melhor das hipóteses. Embora a frase fosse bastante radical e exagerada, não seria nada mau se atentássemos para o subtexto, pois o que estava embutido nisso era o seguinte:
“Cara, tome tenência! Seja útil. A arte da literatura tem que ter um compromisso claro com a terra e os homens. Tanto a poesia quanto a prosa devem ser profundas e simples ao mesmo tempo, pois, afinal, escrever difícil é fácil. Escrever fácil é que é difícil”.
Souzalopes resolveu esse enguiço com um pé nas costas e tornou-se um dos maiores poetas deste país sem ter publicado nenhum livro pelas vias naturais, pois detestava editoras, como eu. Por isso, confeccionava por conta própria simpáticos opúsculos que distribuía entre os amigos. Souza era uma espécie de copista medieval, um monge, um ser que escreve mais para se livrar da agonia poética que lhe entupia as entranhas do que para se tornar conhecido.
Não queria, esbravejava, esculpia justificativas das mais esdrúxulas e, no entanto, pertinentes. Publicar, para ele, não era mais do que uma forma arrogante de acariciar a vaidade e transformar seu nome num altar do ego. Se alguém perguntasse sobre sua forma ou técnica de compor poemas, ele se esquivava com elegância. Sua vida era uma metáfora viva; pulsava aos trancos e barrancos; não era simbolista, não era realista ou naturalista, não era helenista, não era modernista. Pelo simples fato de sabermos mais o que ele não era, sua biografia é impossível.
Por um lado (na teoria), estava certo; por outro (na prática), estava errado. É bem possível que ele não soubesse, mas seus poemas (tanto em verso quanto em prosa) refrescariam hoje os ares da moderna e pobre literatura publicada pelos fisiológicos de plantão.
É radicalmente necessário que sua obra seja divulgada e difundida em todas as latitudes e longitudes do país, mas sem trair seus princípios. Como isso poderia ser feito, não tenho a menor ideia, mas há tempo suficiente para elucidarmos esse enigma. Afinal, da mesma forma que um poema não se faz em minutos ou mesmo em dias, semanas ou meses, sempre haverá uma maneira de eternizarmos o pouco de bom que foi escrito no Brasil nos últimos trinta ou quarenta anos.
Longa vida a Souzalopes.
diàlopes
[depoimento de Eduardo Miranda]'braço forte, como diria o camaradinha Souzalopes, abrindo seus deliciosos emails...
Difícil se conformar com a idéia de não ter mais um amigo neste mundo. Independente de crenças, a perda sempre te remete ao limbo da cobrança: Poderia eu ter feito mais? Poderia eu ter me dado mais a esta amizade? Pois é... foi o que senti ao receber a triste notícia do falecimento do poeta - grande poeta! - Souzalopes. A idéia de não tê-lo mais neste mundo, principalmente considerando o tempo - 2 anos? - que não nos falávamos... Coisas da vida, ávida vida que vai como sempre vai, flui como sempre foi, flor como sempre flor. Como ou sem sabedorãça!
Souzalopes foi pr'orum. Diabos! E já dizem que o céu está um inferno só... de tanta gente boa junta: Arnaldo, Jaquieri, Gey, Calabrone, Marcos Reis... e Souzalopes! E o moço ainda quis recitar poeminha pra São Pedro, em homenagem à sua entrada nos reinos devidos: "quem que de palavras se arma sem arma / dura de pica que só féladaputaquipairu / com olho mais oito no cú do anuro..." São Pedro quase manda ele voltar dali mesmo, mas Souzalopes esperniou e exigiu a presença de Arnaldo Xaviér, poetamigo de várias & outras jornadas, e esbravejou: "Neguinho, apronta uma aí pra mim pois os caras têm que me respeitar! E Arnaldo retrucou: "Companheiro, você nunca passou um dia de negro pra saber o que é ser discriminado!" Resultado: quebraram o pau! Um chamou o outro de racista e tal, até que Cidinha - a Nossa Senhora de Aparecida - apareceu pra apartar! Pegou na mão dos dois e disse: Parem de frescura! Vam'bora, meus poetas!" E adentram o céu, Arnaldo e Souza já planejando o novo livrinho - comunitário, é claro, no velho espírito pyndaýbico!
Mário Luis de Souza Lopes. Itajuipense danado de bom! Lançou pouco, é verdade, mas às favas com essa indústria da literatura & da poesia! Souzalopes produziu muito! Dono da palavra & seu dom, raras vezes visto ou ouvisto, Souzalopes deixou a marca da sua genialidade em poemas não-publicados, em pequenas notas, em panfletos, em boletins, idéias dispersas, emails esporádicos... em todo canto pode-se sentir - e "sentir"é a palavra certa - a genialidade souzalopiana! Esperemos poder resgatar esse material preciosíssimo, e fazê-lo público... o público agradece!
No fervor & na dor, sem ter nada inédito em mãos, TUDA republica material souzalopiano - também algo de inédito em TUDA - para a felicidade geral desta nação tudiana & além! E ao já proclamado 26 de Janeiro (Arnaldo Xavier), adiciono o 28 de Maio (Souzalopes), como as datas perpétuas da poesia pyndahýbica - quizamundi!
asyno eduardo miranda (o auto-proclamado editor),
deste porto seguro da jlha do Eire,
oje, domjngo, dezº dia do sesº mez d'este anno domini de MMXII
Nota do Editor: depoimento publicado inicialmente aqui.
* * *
DEPOIMENTO DE JÚLIO CÉSAR*,
DO ESPAÇO CULTURAL MANÉ GARRINCHA
Começo do Século XXI, Seminário de Poesia Contra a Privatização do Alfabeto organizado, principalmente, pelo poeta Souzalopes. Saíamos embuchados de poesia, procurando algum boteco para continuar a prosa (e a poesia). Souza, que não dispensava uma cachacinha e uma boa conversa, partia dizendo que precisava elaborar a ata e o próximo encontro. Reza a lenda que foram as únicas vezes que o poeta recusou uma mesa de bar com os amigos, e foi pela poesia. Em algum lugar que não me lembro mais qual, conto a história de um passarinho que fugiu da gaiola, parou na janela do apartamento e caiu. Souzalopes me interrompe: “O passarinho caiu?? Como?? Passarinho não voa??” Percebo que, a não ser no reino da poesia, o substantivo passarinho não combina com o verbo cair, esta é uma das lembrança que carrego do Souza, um homem que via o mundo com olhos de poeta. Dez anos depois, Espaço Cultural Mané Garrincha, sarau, vou declamar um poema (não lembro qual nem de quem), mas antes comento algo sobre os versos, Souza questiona: “Vai recitar ou vai fazer o prefácio?? Seu pré fascista!!” Ri e recitei. Esta é outra lembrança que carrego do poeta: uma inteligência sagaz sempre pescando piadas no ar.
Terça-feira, 29 de maio de 2012, cemitério da Vila Alpina, ao pé do caixão do poeta, a última homenagem, sua filha pega um livro e declama Drummond (A noite dissolve os homens): “A noite caiu. Tremenda, sem esperança... Os suspiros acusam a presença negra que paralisa os guerreiros. E o amor não abre caminho na noite.” Escapam-me lágrimas. O caixão desce, conforme sua vontade, o poeta vai para o forno, encontra o fogo, Todo Fogo, depois suas cinzas seriam despejadas no Rio Almada, na Bahia. Pó de poeta. Pode poeta. Pó de poeta se reagrupando. Em versos, na barriga dos caranguejos. O poeta nem viu que o mundo ia acabar, mas se a terra tem fome, que coma já. Ou: carcoma tudo carcoma.
Enfim: a ferrugem corrói a espada mas não a luta, lenta, a ser lutada. Ou: a noite dissolve os homens, mas não a boa poesia dos homens. A homenagem da Mallarmargens mostra que o tempo não vai carcomer a poesia de Souzalopes!
* * *
ENCONTRANDO SOUZALOPES
Por Roberto Dutra Jr.*
Aconteceu alguns anos atrás, sua memória não precisava agora quando. Gregório tinha confiança, bem antes de começar a escrever pra essas revistas de porcaria que hoje lhe garantem o aluguel. Fazia pesquisas, contatos, gostava de se comunicar e muitas vezes conversava com outros artistas pra tentar ampliar sua visão. Gregório já foi considerado um bom escritor.
Era uma noite morna e as pessoas se movimentavam rápido pela rua depois de cumprirem suas rotinas laborais. Gregório sempre usava esse termo por que achava o rótulo mais idiota pra coisa mais idiotizante de todos os tempos. “Quem inventou o trabalho definitivamente não tinha nada pra fazer”, dizia. Um dia ainda ia escrever essa frase, ela tinha um efeito, mas como estava numa boa com seu emprego, soava hipócrita naquele momento. Anos atrás Gregório achava que escritores eram algo diferente de hipócritas galantes. Acendeu um cigarro e apressou o passo, o combinado era justamente na próxima esquina. O segundo no Largo do Paissandu, ao lado da São João.
Um bar arrumadinho, cheio de gente, só não escapava da toalha quadriculada nas mesas e dos azulejos brancos por todas as paredes. Clichê de boteco. Vozerio animado e jalecos brancos no balcão. A cerveja saía sem demora. Era uma boca de álcool melhorada, sejamos francos. Alguém até ganha dinheiro se conseguir aturar todos os pirados bebuns noite após noite. Sentado no fundo aquele homem sozinho, sem chamar a menor atenção. Uns livrinhos na mesa denunciavam a inclinação para a escrita, não podia estar errado.
Aproximou-se, animado. Tinha a sensação de estar no caminho certo, essa noite a vida lhe revelaria alguns segredos ao conversar com um suposto poeta. Havia sido um colega, também escritor, que havia lhe dito pra tirar uma noite e conversar com o cara, que ele entendia das coisas e certamente teria algo que se tirar de proveito na conversa. “Grande Lonza, pena que você não possa vir nessa noite”, pensou.
Apresentações, aperto de mão. O primeiro assunto sempre o amigo em comum.
– Furio não vem?
– Tá enrolado Souza. Precisa finalizar umas coisas pra revista, você entende. Mandou um abraço.
– Cartunistas...
– ... é, os cartunistas.
Antes que o jaleco do boteco escapasse, Gregório interpela de sopetão:
– Um chopps, dois pastéis. Não, melhor dois chopps!
A noite morna e as pessoas passando parece que fez a conversa apressar, mas na verdade foram expurgando assuntos. Curioso como é da natureza urbana reclamar de absolutamente tudo que oprime minimamente nas capitais
de concreto: ônibus, carros, o preço do pão, fumaça, luz, água, o cretino do vizinho, a ex-mulher, trabalho pra cacete, a porra da cerveja quente, advogados sanguessugas...
– Olha, você me desconta nessa que eu sou advogado, ora!
– Po! Foi mal eu não...
– Deixa. Eu não disse nada a respeito mesmo. Furio me disse que você tem um bom coração.
– Os que me acusam de ter um bom coração não entendem porra nenhuma de anatomia. Eles encontraram um outro órgão.
– Você flerta com a poesia. Eu tô sacando.
– Eu não sei direito se ...
– Não. Não sabe. Você não sabe de nada. Só que acaba por ser uma questão de princípios.
O Souza parecia irritado, na verdade sua visão de arte estava sempre em jogo e não era dado a concessões, para isso interpelava a fala dos outros como se fizesse ali mesmo seu manifesto.
– Olha, que poesia nada cara, larga essa pompa. Só falar em poesia já é pompa. Tudo escrita, tudo arte e mesmo assim quase nunca alguma coisa que
preste. Se presta, alguém logo quer alterar. Não tem sossego, não fica original.
– Mas como sei o que presta? Eu sei que não tenho prestígio...
– Que prestígio qual nada, rapaz! Escuta. Você lê, você aprende com o que lê e desenvolve um sensor, que quando você não escreve algo que preste, o papel só serve mesmo pra limpar a mesa.
Gregório acompanhando, com a cara de bocó, pasmo com a certeza com que Souzalopes falava.
– Assim. Você escreve e deixa pra lá. Depois de um tempo você lê de novo e se pergunta: é melhor que Dostoiévski? Então publique.
– E se não for melhor que Dostoiévski?
– Então não publique!
Bateu na mesa, caso encerrado, e quase derramou a tulipa de Gregório.
– Porra... salvei o chopp, mas acho que deixei meu foco cair no chão...
– Por isso que essa porra tá toda emporcalhada aqui...!
Os dois se olham, e Gregório vociferou uma série de palavrões. Finalmente havia quebrando o gelo e os dois desataram a rir da situação.
Chopps, pastéis, chopps, filezinho. Publicar ou não publicar, eis a
questão. Há mais porcaria pintada no papel que nossa vã vaidade nos permite argumentar. Poeta bom nunca sai por cima, ou da prateleira, ou do prelo. A vida rodando louca nessa cidade em que nada acontece e tudo acontece é muito maior que a palavra.
– Eu não escrevo poesia! Escrevo do que entendo e por causa disso eu prefiro eu mesmo fazer meus livros. Olha eu vou te dizer uma coisa, não... vou te dizer duas coisas que você pode querer guardar contigo. Vou te falar, olha:
Fez uma pausa, como se livrasse dos chopps e quisesse uma voz mais anunciativa, ou cordelística, queria ser despoesia. Olhou bem pro Gregório e disparou:
as mulheres são amadas na exata
terra da palavra água seu sol e
sua fala rio mais veloz o fo
go mais voraz a fera mais fera
garras de areia e dentes
de maré-cheia: chão
– Não é diferente disso, nem mais ou menos. Sem Nietzsche nem Marx ou ideologias. Essas porcarias... vai acabar tudo. Aqui nesse livrinho eu escolhi tudo eu sou eu, fazedor, escrevensador, escrinventor, poesenhista.
Prestenção:
o morte um coiso surdo
vírus de tudo esquisito
esquécido úrubu só
– Isso mesmo. Isso por que morte é masculino, coiso. Vem, vai toma sem
permissão pingafogo e furafígado. Todo vulto do desmundo que nos atravessa as mesas e as salas. Aqui mesmo, nessa cidade velha, concretaço sobre concretaço.
Sabe de uma coisa cara? É despoesia. O mais importante é: beije a mulher, beije os filhos e abrace.
O Gregório estatelado, não sabia o que ocorrera. Souzalopes ergue novamente o copo. Ainda ficaram mais uma hora ali. Terminaram novamente falando dos amigos em comum. Olharam profundamente o concretaço em volta e se despediram com um abraço. Abraços e lembranças pros amigos, na mulher, nos filhos. Amanhã quem sabe marcamos de novo, quando o Furio puder vir também.
Garoa na paulicéia. Certo como o coiso... sempre retornava com a garganta ruim. Seria hora de voltar pro Rio? A vida afinal havia lhe reservado uma revelação. Grande ou não, agora era com ele. Não tenha ilusões a respeito do que envolve a criação.
Poeta bom é despoeta, afinal. Que a vida engole tudo, desumana roda.
Era uma noite morna e as pessoas se movimentavam rápido pela rua depois de cumprirem suas rotinas laborais. Gregório sempre usava esse termo por que achava o rótulo mais idiota pra coisa mais idiotizante de todos os tempos. “Quem inventou o trabalho definitivamente não tinha nada pra fazer”, dizia. Um dia ainda ia escrever essa frase, ela tinha um efeito, mas como estava numa boa com seu emprego, soava hipócrita naquele momento. Anos atrás Gregório achava que escritores eram algo diferente de hipócritas galantes. Acendeu um cigarro e apressou o passo, o combinado era justamente na próxima esquina. O segundo no Largo do Paissandu, ao lado da São João.
Um bar arrumadinho, cheio de gente, só não escapava da toalha quadriculada nas mesas e dos azulejos brancos por todas as paredes. Clichê de boteco. Vozerio animado e jalecos brancos no balcão. A cerveja saía sem demora. Era uma boca de álcool melhorada, sejamos francos. Alguém até ganha dinheiro se conseguir aturar todos os pirados bebuns noite após noite. Sentado no fundo aquele homem sozinho, sem chamar a menor atenção. Uns livrinhos na mesa denunciavam a inclinação para a escrita, não podia estar errado.
Aproximou-se, animado. Tinha a sensação de estar no caminho certo, essa noite a vida lhe revelaria alguns segredos ao conversar com um suposto poeta. Havia sido um colega, também escritor, que havia lhe dito pra tirar uma noite e conversar com o cara, que ele entendia das coisas e certamente teria algo que se tirar de proveito na conversa. “Grande Lonza, pena que você não possa vir nessa noite”, pensou.
Apresentações, aperto de mão. O primeiro assunto sempre o amigo em comum.
– Furio não vem?
– Tá enrolado Souza. Precisa finalizar umas coisas pra revista, você entende. Mandou um abraço.
– Cartunistas...
– ... é, os cartunistas.
Antes que o jaleco do boteco escapasse, Gregório interpela de sopetão:
– Um chopps, dois pastéis. Não, melhor dois chopps!
A noite morna e as pessoas passando parece que fez a conversa apressar, mas na verdade foram expurgando assuntos. Curioso como é da natureza urbana reclamar de absolutamente tudo que oprime minimamente nas capitais
de concreto: ônibus, carros, o preço do pão, fumaça, luz, água, o cretino do vizinho, a ex-mulher, trabalho pra cacete, a porra da cerveja quente, advogados sanguessugas...
– Olha, você me desconta nessa que eu sou advogado, ora!
– Po! Foi mal eu não...
– Deixa. Eu não disse nada a respeito mesmo. Furio me disse que você tem um bom coração.
– Os que me acusam de ter um bom coração não entendem porra nenhuma de anatomia. Eles encontraram um outro órgão.
– Você flerta com a poesia. Eu tô sacando.
– Eu não sei direito se ...
– Não. Não sabe. Você não sabe de nada. Só que acaba por ser uma questão de princípios.
O Souza parecia irritado, na verdade sua visão de arte estava sempre em jogo e não era dado a concessões, para isso interpelava a fala dos outros como se fizesse ali mesmo seu manifesto.
– Olha, que poesia nada cara, larga essa pompa. Só falar em poesia já é pompa. Tudo escrita, tudo arte e mesmo assim quase nunca alguma coisa que
preste. Se presta, alguém logo quer alterar. Não tem sossego, não fica original.
– Mas como sei o que presta? Eu sei que não tenho prestígio...
– Que prestígio qual nada, rapaz! Escuta. Você lê, você aprende com o que lê e desenvolve um sensor, que quando você não escreve algo que preste, o papel só serve mesmo pra limpar a mesa.
Gregório acompanhando, com a cara de bocó, pasmo com a certeza com que Souzalopes falava.
– Assim. Você escreve e deixa pra lá. Depois de um tempo você lê de novo e se pergunta: é melhor que Dostoiévski? Então publique.
– E se não for melhor que Dostoiévski?
– Então não publique!
Bateu na mesa, caso encerrado, e quase derramou a tulipa de Gregório.
– Porra... salvei o chopp, mas acho que deixei meu foco cair no chão...
– Por isso que essa porra tá toda emporcalhada aqui...!
Os dois se olham, e Gregório vociferou uma série de palavrões. Finalmente havia quebrando o gelo e os dois desataram a rir da situação.
Chopps, pastéis, chopps, filezinho. Publicar ou não publicar, eis a
questão. Há mais porcaria pintada no papel que nossa vã vaidade nos permite argumentar. Poeta bom nunca sai por cima, ou da prateleira, ou do prelo. A vida rodando louca nessa cidade em que nada acontece e tudo acontece é muito maior que a palavra.
– Eu não escrevo poesia! Escrevo do que entendo e por causa disso eu prefiro eu mesmo fazer meus livros. Olha eu vou te dizer uma coisa, não... vou te dizer duas coisas que você pode querer guardar contigo. Vou te falar, olha:
Fez uma pausa, como se livrasse dos chopps e quisesse uma voz mais anunciativa, ou cordelística, queria ser despoesia. Olhou bem pro Gregório e disparou:
as mulheres são amadas na exata
terra da palavra água seu sol e
sua fala rio mais veloz o fo
go mais voraz a fera mais fera
garras de areia e dentes
de maré-cheia: chão
– Não é diferente disso, nem mais ou menos. Sem Nietzsche nem Marx ou ideologias. Essas porcarias... vai acabar tudo. Aqui nesse livrinho eu escolhi tudo eu sou eu, fazedor, escrevensador, escrinventor, poesenhista.
Prestenção:
o morte um coiso surdo
vírus de tudo esquisito
esquécido úrubu só
– Isso mesmo. Isso por que morte é masculino, coiso. Vem, vai toma sem
permissão pingafogo e furafígado. Todo vulto do desmundo que nos atravessa as mesas e as salas. Aqui mesmo, nessa cidade velha, concretaço sobre concretaço.
Sabe de uma coisa cara? É despoesia. O mais importante é: beije a mulher, beije os filhos e abrace.
O Gregório estatelado, não sabia o que ocorrera. Souzalopes ergue novamente o copo. Ainda ficaram mais uma hora ali. Terminaram novamente falando dos amigos em comum. Olharam profundamente o concretaço em volta e se despediram com um abraço. Abraços e lembranças pros amigos, na mulher, nos filhos. Amanhã quem sabe marcamos de novo, quando o Furio puder vir também.
Garoa na paulicéia. Certo como o coiso... sempre retornava com a garganta ruim. Seria hora de voltar pro Rio? A vida afinal havia lhe reservado uma revelação. Grande ou não, agora era com ele. Não tenha ilusões a respeito do que envolve a criação.
Poeta bom é despoeta, afinal. Que a vida engole tudo, desumana roda.
Nota do Autor: Esta é uma obra de ficção, concebida sobre alguns eventos reais e algumas das idéias de Souzalopes , bem como os poemas citados são de sua autoria.
SL completaria sessenta anos, se estivesse vivo, nesta terça-feira, dia 12. Sua obra é curta e artesanal, seu valor artístico é imenso.
SL completaria sessenta anos, se estivesse vivo, nesta terça-feira, dia 12. Sua obra é curta e artesanal, seu valor artístico é imenso.
* * *
PRIMEIRA IMPRESSÃO:
DEPOIMENTO DE MAURO GAMA*
DEPOIMENTO DE MAURO GAMA*
"Olhe, cara, acontece uma coisa estranha: gosto muitíssimo do Souzalopes. É grande poeta. Reconheço-me suspeito, pois achei numerosas afinidades dele com muita coisa da minha poética [...], a "estruturalidade" da expressão ao mesmo tempo semântica e fonética, a rima super-revalorizada, o lirismo desbocado mas concreto. [...] SL é do cacete! Adorei, igualmente, a figura humana, e revolucionária;
São poemas de impressionante inteireza tanto estética como ética, isto é, de uma originalidade irreprimível, agudo sentido crítico (fustigando a nossa miserável condição física, se é que temos alguma outra - para o poeta, é obvio que não), com uma linguagem de fluxo obsessivo, tão assintática [...] mas de corte mais severo, como se fosse um lirismo de catacumba e de destruição. Esse cara é realmente um achado!"
* * *
DOCUMENTOS
DUAS CARTAS PARA RONALD AUGUSTO
1. SP, 24/01/1995
2. SP, 14/08/1996
TRANSCRIÇÃO:
sãp14ago96
r/augusto,
'braço forte.
_________________________
&
não tenho, digo e redigo, irmão de almas, muito o que escrever - que quase nada há
mais a ser falado (exceto algumas palavras da tribo).
&
por isso, irmão de almas, fico nisso: não escrevo poesia - cacto cactus e desescrevo
fragmentos de um mesmo poema (que - juro - nunca vou ver até o fim); e daí a
escrever poesia, irmão de almas, avoam lonjuras, que muito longo é o longe e seus
caminhos.
&
porque, irmão de almas, poesia é uma cidade velha. velha, pobre e acidentada,
depende da caridade pública, que lhe garanta ficarem-lhe ao menos os dentes.
&
que assim é, irmão de almas: mais fácil um cachorro morder o buraco da agulha; que
poesia, irmão de almas, não pode ser-se sem dentes. em falta de letras, poetas
praticam antologias, correto seria se odontologias (ferros, dentes e gemidos).
&
que fazemos nós, irmão de almas, numa cidade velha, senão procurar camelos nos
fundos das agulhas?
&
não só por isso, irmão de almas, daqui o abraço.
(assinatura)
DUAS FOTOS
![]() |
da esq p dir.: Eduardo Miranda, Roniwalter Jatobá e Souzalopes |
![]() |
da esq p dir.: Souzalopes, Eduardo Miranda e Roniwalter Jatobá |
ATENÇÃO!
LEIA TODA A HOMENAGEM A SOUZALOPES
[parte hum: depoimentos, conto, cartas, fotos]
* * *
Furio Lonza (Trieste, 1953) é escritor, dramaturgo e jornalista. É autor de 17 títulos, entre romances, contos, livros infanto-juvenis e ensaios.
Ronald Augusto nasceu em Rio Grande (RS) em 1961. Poeta, músico, letrista e ensaísta. É autor de, entre outros, "Homem ao Rubro" (1983), "Puya" (1987), "Kânhamo" (1987), "Vá de Valha" (1992), "Confissões Aplicadas" (2004), "No Assoalho Duro" (2007), "Cair de Costas" (2012), "Oliveira Silveira: poesia reunida" (2012), "Decupagens Assim" (2012) e "Empresto do Visitante" (2013). Dá expediente no blog "poesia pau" e é colunista do site "sul21".
Eduardo Mirandaé músico, escritor, poeta, tradutor, profissional de tecnologia da informação e conoisseur de vinhos. Guitarrista e fundador do grupo "WEJAH", colaborou no "Stillwater Sessions", é integrante da banda "Wellfish" e atualmente lidera o projeto musical "The Virtual Em3". Publicou o livro de poemas "Quase" (Casa Pyndahýba, 1998) e as coletâneas "Amigos" (Casa Pyndahýba, 1994) e "Contra Lamúria" (Casa Pyndahýba, 1995). Editor da Revista Eletrônica "TUDA", também comete seus próprios rabiscos e dá expediente em alguns blogs por aí - confira aqui. Escreve sobre vinhos no blog "dagos" e nas horas vagas ainda trabalha com Tecnologia da Informação em Dublin, República da Irlanda.
Roberto Dutra Jr.é um neurótico social como todo brasileiro de cidade grande. Adora literatura, mas as palavras não fazem mais sentido. Mestre em Letras, tem um livro publicado e diversos artigos de caráter acadêmico e crítico publicados. Foi editor de revista acadêmica, contribuiu para jornais e revistas literárias no Rio de Janeiro e tem um seríssimo flerte com a música. Adora gatos e poemas, que movem-se na penumbra e nunca revelam-se inteiramente. Leia mais textos do autor aqui (zona da palavra) e aqui (mallarmargens).
Mauro Gama nasceu em 1938, no Rio de Janeiro. É poeta, tradutor, ensaísta e crítico literário. Foi redator em várias revistas, jornais, enciclopédias e dicionários. Publicou, entre outros, "Corpo verbal" (1964), "Anticorpo" (1969), "Expresso na noite" (1982) e "Zoozona seguido de Marcas na noite" (2008). Traduziu sonetos de Michelangelo (2007) e poemas de Gérard de Nerval (2013).
Júlio César nasceu e vive em São Paulo há 35 anos. É poeta e economista por uma série de acasos. Em 2011, publicou "Gurupá & Poemas do Vento". Atualmente, trabalha no livro eletrônico "35", que pretende publicar em breve. Pertence aos quadros do Espaço Cultural Mané Garrincha.