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Superfície Noturna - Leopoldo Comitti

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Ilustração: deviantART


1.
O retrato prometera tragédia. Agora a tem, cruel.
Da parede, perverso, e olha atento, curioso,
um corpo exposto que ofendera em semelhança
no traço do pincel moroso, exato e sem escolha.

Anos antes ficara pronto. Pronto, prematuro e velho,
segregado de olhares, renegado. Agora se surpreende
presente na cena de um fútil e lento crime silencioso.

Infame a fita, preso à tela imóvel sem moldura, simples.
Mas da tinta, a espessura alonga. De pouco em pouco
a superfície se desprende do traço, o risco afina, estende
rápido o antigo e esquecido dorso, sem cores ou fundo.

A face alisa, em espelho espesso, coberto e frio.
Prometera um corte ou forca. prometera carnificina
ainda mais rude. Vê apenas, e agora, uma gelada
quietude tosca. Mas, impassível se já satisfeito
realiza a transmutação do sangue em marmóreo
corpo inerte. Lento e manso devagar se modifica;

como espelho polido em prata e frio surpreende
e ao quarto escuro devolve a cena. Reflete a morte.

2.
Um biscoito sobre a mesa apodrece, mole
entre formigas. Quase que paira sobre
a toalha suja, entre miçangas e migalhas.
Azedo, um cheiro de leito apodrecido
expande o contraponto de um perfume.

Não há mais corpo, somente resto. Talvez.
nem rosto, uma estátua muda e inferente,
resquício de um gesto parado e inútil.

Abraçado a si mesmo, como sangue coagulado, 

o dia dorme. Sem qualquer despertar sutil
ou arranco de dor da inexorável vinda das horas,
de mais horas, novas ou antigas; enfadado.
Nada mais pensa. Pesa quase serena e sóbria
sobre a almofada. Não vê quadro ou espelho,
certa agora de que a ansiedade ficou presa
na moldura. Não gritará mais no velho relógio:

 hora suspensa.


Leopoldo Comitti


Poema de A Mordida do Cordeiro (Editora Patuá,2014).

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