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11 POEMAS DE "UMA BALADA PARA JANIS", DE KÁTIA BORGES

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Pearl



7.


Quando for um velho,
quero continuar selvagem,
que o branco dos cabelos
não me santifique, que o branco
dos olhos não me cegue
inteiramente. Quando for
um velho, como esses
que vejo hoje, com graça
e boa-vontade, que saibam todos
o quanto continuo jovem
e rebelde. Quando for
um velho, espero que sobre
a voz, à mão, um revólver,
inda que erre, que lance a fúria
contra tudo que me inquiete,

enquanto eu não for.



9.


A poesia como um barco,
navio ancorado no espaço,
entre infância e adolescência.
E amores de braços longos,
imperfeitos até para o adeus.

Livros de cabeceira,
para entrar no sonho,
quando a dor alcança.
E criar, dentro do sono,
um outro país perfeito.

Nos olhos cheios de horizonte.
A poesia como um barco,
navio escorado por cabos de aço,
suspenso sobre um oceano
imaginário.



Port Arthur, Texas



10.


Minha infância é um país
destruído, do qual parti em sobressalto,
numa noite sem sonhos.
Estávamos todos acordados,
os colegas de jardim, os vizinhos,
o namorado de 8 anos, seguindo
por ruas desertas, e em ruínas.

Deserdados, e de mãos dadas,
buscamos abrigo seguro, deixando
nossas mãos soltarem-se
umas das outras. Não sei dos outros,
mas cheguei aturdida
– sem adolescência que desse conta,
do passaporte e da bagagem –
numa outra espécie de vida.



High Ashbury, San Francisco



3.


Hoje, amor,
ofereço a você
minha infância
(a menina que fui,
selvagem e livre,
cabelos e sonhos
embaraçados,
pés descalços,
riso fácil).

Hoje, amor,
ofereço a você
minha ternura

(a mais íntima e funda).


8.


Aonde vou, levo comigo um coração aberto,
mesmo se é sábado ou domingo,
quando até os sentimentos folgam,
deixo os meus de plantão.

Assim, olho aceso e sorriso,
palavra boa na boca,
sempre estarão de serviço.



Landmark Hotel



1.


Um dia comum não te guarda.
Há furacões ao sol, nuvens
de azogue prontas a dar o bote.
Um dia comum não te guarda.
O passar das horas esconde o laço,
e noites sem alvorada aguardam
em camarilha. Um dia comum
enovela todos os dias no que avessa
o calendário, a armadilha.
E nem Maeve, Miguel Arcanjo ou Exu.
Nem mesmo Exu te guarda.


4.


Uma dançarina não dura
mais que um Verão.
Quando março chega,
e um único dia é das mulheres,
todas as águas fecham-se
numa muralha intransponível.
Então as dançarinas murcham,
pétalas caem de seus talos,
seus pés adormecem, e elas
ficam quietas feito flores doentes.
As dançarinas aguardam,
em vasos que as guardam,
mui delicademente,
a Primavera.


10.


De um sumiço na vida, e ócio,
fiz a cutícula, e todos os dedos
agarraram-se uns aos outros,
em punho, um uivo, as unhas cravadas
na própria pele, gotículas
frias de suor no rosto, e um riso
que escorrega até onde os pés
cravam-se, as plantas, nessa terra
que é de ninguém. Nem soco,
nem brisa, que venha acordar
o que, morno, deslizará.


11.


Pensara em tudo com zelo:
se desligasse o gás,
as velas, apagadas,
nenhum risco trariam
à solidez da casa.
Sim, se trancasse
a porta com duas voltas
seguras, no bolso, a chave
iria e, na bolsa, a outra cópia.
E ninguém poderia
entrar desavisadamente,
nem nenhuma ventania
varreria os móveis,
acariciando a poeira,
pois as janelas fechadas
vedariam hermeticamente
tudo. Mas, uma vez lá fora,
lembrara do cachorro:
Há comida e água nos potes?
Decidida, teria que esquecê-lo,
deixá-lo, deixar-se, entregues à própria sorte.


12.


O que não digo ainda existe
no olhar que ergo, alegre ou triste,
paixão, soberba, amor ou fúria,
o que não digo ainda insiste
em desfazer-se em pura angústia,
palavra morta, arde na boca,
azeda a língua, o que não digo
ainda assim ocupa espaço, aéreo
fardo que carrego. Livros me livrem
do desassossego, desta palavra que eu não digo,
e para sempre pesa no verso.


14.


Vivendo no abandono, saio do cinema, a última sessão,
faz calor no shopping center, desligaram os elevadores,
e um anjo aperta a minha mão enquanto desço as escadas
rolantes, paralisada. Inútil olhar vitrines. Agora,
roupas e acessórios são apenas coisas, nada. Nada funciona.
Olho os longos corredores vazios, iluminada. Só há guardas,
vagando silenciosos, entediantes em suas fardas. Estou indo
embora, sombra que evapora, dentro da noite refrigerada.





Na foto: Janis Joplin



*    *    *






Kátia Borges, 46, é escritora e jornalista. Publicou os livros de poesia "De volta à caixa de abelhas" (2002, Selo As Letras da Bahia), "Uma Balada para Janis" (2010, Edições P55) e "Ticket Zen" (2011, Escrituras) e, de prosa, "Escorpião Amarelo" (2012, Edições P55).  Seus poemas foram publicados ainda nas coletâneas, "Sete Cantares de Amigos", "Concerto Lírico para 15 vozes", "Roteiro da Poesia Brasileira - Anos 2000", "Traversée d'Océans – Voix poétiques de Bretagne et de Bahia", edição bilíngue organizada por Dominique Stoenesco, e "Autores Baianos - Um Panorama"(2013, Secult/P55), edição trilíngue lançada durante a Feira do Livro de Frankfurt.


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