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2 contos de Alexandre Nobre

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Aila

Tum-tum-tum-tum. Por mais que eu não queira, a mixórdia de tambores e ritmos invade os meus ouvidos e me deixa assustado. De nada adiantaria eu apressar-me até o táxi, ou retroceder para o hall do hotel, o elevador, ou antes ainda, o quarto escuro e o sono repousante: O carnaval está no ventre desta cidade! Decido-me pelo táxi e arrisco uma corrida rápida. O motorista abre a porta com cuidado, retoma o seu lugar e, sem dar-lhe chance, eu o proíbo de ligar o rádio. Ele não estranha a minha primeira solicitação, mas engasga-se com a segunda. Repito: que cumpra exatamente o roteiro que lhe ordenei; siga daqui, do Hotel Glória, pelas praias da zona sul, percorra todos os pontos turísticos do Flamengo até o Leblon, depois vá até a Lagoa Rodrigo de Freitas, passeie pelo Jardim Botânico, e retorne novamente para a Lapa. Quero demorar-me um bocado na Lapa. Preciso conhecer os Arcos! Por fim, peço que passe pela Confeitaria Colombo, uma voltinha no centro da cidade e termine o passeio outra vez em frente ao Hotel, onde deve esperar-me descer e fechar a conta. E então seguiremos direto para o Santos Dumont. Não, não me importa que este caminho esteja confuso, ou que poderia ser mais prático. Jamais estive no Rio de Janeiro, e é assim que deve ser. E também será necessário que ele não fale comigo pelo trajeto, mas me informe cada novo ponto turístico, obrigatoriamente, sem exceção. Isto porque durante todo o tempo eu vou estar com os olhos vendados.

- Mas o senhor tem certeza? Um dia tão bonito...

Já percebi que ele não vai seguir as minhas instruções. Pelo menos sobre não falar comigo. Sim, eu tenho certeza. Quarenta e nove anos de casado e eu nunca traí a minha esposa. Não seria agora, e com ela morta... O automóvel começa a andar e eu me sinto aliviado. O motorista deve estar se perguntando que tipo de velho maluco eu sou. Contratar um passeio e estar assim vendado. Já disse, jamais traí a minha mulher. Quarenta e nove anos... Como a vida pode ser injusta! Um aninho mais e a gente completaria bodas. A Aila sempre sonhou com sua festa de bodas.

- Aqui, estamos seguindo pelo Aterro. É muito bonito o parque. Mas terei que desviar porque a rua está fechada. Deve ser algum bloco de carnaval. O senhor não gosta de carnaval, não é?

Carnaval. Carnaval. É compreensível que ele pense que eu não goste de carnaval. Na verdade, se soubesse... O carro avança lentamente enquanto eu recordo aqueles dias longínquos, os bailes na Esportiva Sorocabana. De repente minha cabeça se enche com um monte de coisas disparatadas: os enfeites e as fitas coloridas, um vendedor de amendoim, as máscaras e o sorriso sempre enigmático das mulheres fantasiadas. A banda atacando as marchinhas antigas e aquele encontro com Aila, nosso primeiro baile juntos. Depois, já casados, quando nos mudamos para Minas, como eram bons os nossos bailes de carnaval! A Aila gostava ainda mais do que eu; divertia-se muitíssimo, cantando sorridente os sambas da época. Se soubesse que viria durante o carnaval a notícia terrível... 

- Dá para seguirmos assim até Botafogo. A vista da Enseada é uma coisa belíssima, precisa ver... Depois, mais para frente, Copacabana. O senhor pretende andar de bondinho?

Impossível não pensar em Aila. Impossível depois de todos estes anos vivendo juntos, de tantos costumes adquiridos no compasso do tempo... De todas as solidões possíveis, esta é a pior. Porque é uma solidão carregada de saudades. Saudades que aumentam e pioram muito durante o carnaval. Pois quando me recordo daquele dia fatídico, aquele fevereiro triste... Extração de mama! Quando ela recebeu a notícia fez uma cara de incompreensão sofrida. Como se não pudesse acreditar na doença. Como nunca acreditou também naquela cicatriz redonda no peito, aquela ausência estúpida a lhe roubar o sorriso fácil do rosto. E eu, sem saber como encará-la quando ela, levantando a camisa, me mostrou uma trama pálida sem resistência nem forma, vazia de um contorno que meus dedos ainda não haviam esquecido completamente...  Suportou seis longos meses o estigma grosseiro. Depois, não pôde mais.

- Avenida Atlântica. Pronto. Copacabana. A princesinha do mar. A praia está cheia hoje, uma beleza... Ali, mais adiante, o Copacabana Palace.  

Quantas vezes planejamos esta viagem? Quantas vezes imaginamos juntos este sonho dourado, esta fantasia que jamais pudemos realizar?  Fomos nós próprios os culpados, Aila? Nós que, a tal ponto cativos, enredados numa teia interminável de necessidades, deixamos os dias escoarem lentamente. E Minas cada dia mais longe... Para mim, confesso, tantos compromissos não serviram de nada. Melhor seria ter cumprido nossas vontades. Gozar a beleza e agitação quente desta cidade com você ao meu lado. Quando você ainda vivia. Quando tudo ainda fazia algum sentido... Hoje restou-me apenas uma saudade triste, um lamento que já é quase um hábito. Mas isto, eu sei, é assunto inútil. Apreciaria antes lembrar aquele nosso desejo antigo: Conhecer o Rio de Janeiro durante o carnaval! Copacabana, Ipanema, Lagoa, Leblon, são tantos os lugares com que sonhávamos! E nossas noites seriam todas na Lapa. Ouvindo os sambas antigos na Lapa, nos amando na Lapa, sob os arcos da Lapa, reviver nossas juras de amor eterno. Mas então, a morte estúpida e ingrata! O sonho interrompido com golpes secos de bisturi. E eu de repente sozinho. Eu confuso e perdido. Eu próprio mutilado. Mas, ainda assim, precisei vir até aqui, Aila. Por quê? Para quê? Para ter você uma vez mais, ora. Entretanto, não poderia desfrutar esta beleza toda sozinho. Esta cidade tantas vezes cobiçada. Não posso. Não tenho este direito. Por isso tapei meus olhos. Para não te trair. Mas vejo agora, obviamente, que de nada adiantou. Que mesmo esta cidade não poderá trazer você de volta. E isto eu constato aqui, sentado dentro deste táxi, de olhos vendados, e sentindo o sol cuspir-me a luminosidade e a animação nervosa da cidade, enquanto eu penso de quê me serve isto agora? E é assim que o Rio já não me basta. Que aquele vazio que você exibia tatuado no peito, eu herdei-o todo aqui dentro. Inúmeras vezes aumentado. E é assim também que eu, subitamente, resolvo mudar os planos. Não quero mais continuar o passeio. Quero ir direto para a Lapa. Cancela e toca para a Lapa! Eu preciso ver os Arcos!

O motorista estaciona no meio-fio. Tateio a maçaneta e abro a porta, atrapalhado. Ele corre ao meu lado, tenta me segurar pelo braço. Desvencilho-me. Ainda ouço a sua voz desesperada, me avisando dos carros, do trânsito perigoso. Não me importo e sigo pela rua sem enxergar. Um zumbido atravessa meu caminho. Ouço gritos, buzinas, um motor que passa bem próximo, roncando. Não importa mais: Estou indo agora, Aila: Eu vou tocar os Arcos!     






Fazenda Nova América


O ônibus chega num repente, expelindo uma nuvem demorada de poeira e fumaça. Dentro, os poucos passageiros acordados, enfastiados por tantas horas de viagem, veem surgir primeiro a cabeça magra do homem, depois o corpo seco e ossudo, metido num paletó puído, da mesma cor estéril do restante da paisagem. Em seguida sobem as duas meninas. Faz-se um gemido demorado, o motor dá um tranco e o ônibus parte, sacolejando pela estrada pedregosa.

Sentam-se em fileiras paralelas, o homem ocupando duas poltronas e as meninas nos bancos ao lado, imóveis e caladas. A imagem à janela é de desolação: nenhuma cor, nenhuma árvore, nem mesmo o menor sinal de animais pastando por ali. A estrada é só um braço de terra vermelha, poeirenta, aberta no meio do nada. O mundo árido e resignado. Dentro do ônibus tampouco é diferente: não há conversas ou risadas, os movimentos são mínimos, quase imperceptíveis. 

De tempos em tempos o homem remexe-se nos bancos gastos, passa a língua pelos lábios ressequidos, testa enrugada, lançando um olhar esvaziado para o azul terrível do céu. As meninas permanecem quietas. Nenhum gesto. Uma delas, a mais velha, às vezes arrisca um olhar mais atrevido para os lados, enquanto alisa com o dedo indicador o vinco do vestido florido. A outra mantém os olhos fixos para frente, duas plaquinhas coladas no painel do ônibus: “Família Maglini” e “Até aqui nos ajudou o Senhor”. Os vestidos das meninas, um vermelho; o outro, verde, ambos com flores estampadas, destoam do restante da paisagem. Depois de algumas horas começam a surgir as primeiras casas à beira da estrada.

Os três são os únicos a desembarcar na rodoviária minúscula, semi-deserta. O pai segue andando na frente, acompanhado de perto pelas duas meninas. No caminho, enquanto atravessam a cidade, as poucas pessoas na rua se voltam para olhá-los. Primeiro observam as meninas, com seus vestidinhos exagerados, e depois fitam demoradamente o pai. O homem mantém-se sério, sustentando-se contra a luz branca do dia, mas seu rosto está marcado, com uma expressão de derrota que vem do fundo dos olhos. Quando passam pela porta da mercearia as filhas se agitam. O homem apalpa com a mão o bolso interno do paletó, mas logo desiste e recomeça a andar. 

A plaquinha de madeira pendurada no tronco de uma árvore indica a entrada: Fazenda Nova América.  Seguem pela alameda aberta em meio ao canavial, com flores amarelas plantadas dos dois lados. Quem os recebe é o capataz.

Ali mesmo, na varanda, ele avisa: o coronel andava muito ocupado. E não havia mais interesse em arrendar terras para o lado onde eles moravam. O homem insiste que precisa vê-lo. Contrariado, o outro dá de ombros: se quisessem teriam que esperar.
Aponta com o queixo para fora e acrescenta:
- Mas só depois do almoço. 

Sentam-se na muretinha da varanda, o pai virado em direção à plantação, e as meninas voltadas para dentro, de frente para um imenso sofá de junco. O homem arranca uma haste de capim para ter o que morder, enquanto pensa na diferença da roça do coronel para o seu pedaço de terra esturricada, ambas banhadas pelo mesmo sol escaldante. Já passa de uma da tarde quando uma mulher vem buscá-los.    

Seguem pelo interior da casa e o homem caminha calado, imaginando se a mulher é a tal primeira, de quem já ouvira tantas e tantas histórias. Sabia que o coronel nunca fora casado, mas sempre havia muita conversa... Num momento, enquanto atravessam um corredor comprido, pontilhado por uma série de quartos, um perfume invade o lugar. Algumas portas estão entreabertas e as meninas pensam que o cheiro poderia vir de lá.    

Entram no escritório e o coronel permanece sentado, fazendo anotações, sem olhá-los. Quando ergue a cabeça parece surpreso em ver as duas meninas ali. Passa algum tempo olhando para elas, em pé, paradas, apenas alguns centímetros depois da porta. Só então é que repara no pai e faz um gesto mecânico em sua direção:
 - Muito bem, o senhor queria me ver?

O homem mantém-se inerte, olhando para o chão, e o coronel repete a pergunta, um pouco mais alto agora, com certa impaciência. Após algum esforço a fala do homem chega titubeante, desafinada:
- É que as coisas estão difíceis.

As meninas não tiram os olhos do coronel: um homem grande, de rosto vincado e sanguinolento, as mãos enormes pousadas sobre a mesa como dois pequenos animais. Ele também olha um pouco para elas, um pouco para o pai, as sobrancelhas grossas, franzidas sobre uns olhos muito vivos. Começa a falar:
- Acredito que o meu capataz já lhe adiantou que não tenho interesse em arrendar mais terras. Daqui até o final do ano...
- Sim senhor, já disse sim.

O homem sustenta-se em pé, olhando para os próprios sapatos, marrom-desbotado, como se falasse com eles. O coronel fica agitado, ajeita-se melhor na cadeira, e joga o corpo enorme contra o encosto dobrável.
- Então? – pergunta.

 O homem desmorona: sabia que o momento não era bom, mas com a terra do jeito que estava, tão pouca e torrada de sol; já não era fácil tirar o sustento para dois, para quatro então, estava ficando impossível. Ainda mais agora, que ia vir mais um, imagina, a mulher grávida de novo, e ele não sabia mais como iria se virar. O coronel que não se enganasse, ele não era desses mal-agradecidos, sabia que o coronel socorria quando era possível, até onde o senhor nos ajudou as coisas sempre andaram bem, mas agora fazia tempo já que o coronel não arrendava mais terras, e ele precisava, implorava qualquer ajuda...

As meninas correm os olhos pelo escritório: os quadros pendurados na parede, a escrivaninha e a cadeira de couro branco, muitas fotos de gado espalhadas pelas prateleiras, enfeites, duas cadeiras e um sofá em que elas não se atrevem a sentar.

O coronel sossega, mantêm-se bem acomodado, leva uma das mãos ao queixo e coça o rosto, debruçando-se sobre a mesa. Depois, faz menção de falar, mas volta a recostar-se e emudece. Olha bem para o rosto do homem, procurando seus olhos sem poder encontrá-los. Finalmente, fazendo um gesto longo, de cansaço, diz:

- As pessoas aqui são engraçadas. Vivem me pedindo ajuda – faz uma pausa e acrescenta – Mas, assim que eu ajudo, elas logo se esquecem e começam a inventar histórias, fofocas... 

Então leva novamente a mão ao rosto e esboça um movimento lento, afirmativo, olhando firme em direção ao homem. Pega um sininho sobre a mesa.

Antes de sair, o homem acena na direção das meninas, sem olhá-las. Sua voz luta para soar natural:
- Uma já tem quinze. A outra ainda é novinha, só treze, mas vai encorpar logo também. Enquanto isso pode ir ajudando nos serviços da casa. 


Quando retorna, cruzando as ruas da cidade, passa outra vez em frente à mercearia e instintivamente faz menção de olhar os doces na vitrine. Não precisa levar a mão até o bolso para sentir o grosso volume que carrega sobre peito.

Mas agora, sozinho, estranhamente não tem mais fome.   


Ilustrações: Helena Coelho :http://pinturasnaifdehelenacoelho.blogspot.com.br/2011/01/blog-post.html





Alexandre Nobreé paulistano, mas reside em Ribeirão Preto, interior do estado. Durante os anos noventa atuou como compositor e guitarrista em bandas de blues e rock e, paralelamente, publicou algumas poesias e contos em jornais e revistas da cidade e região. A partir de meados dos anos 2000 passou a dedicar-se à literatura, sendo premiado em diversos concursos literários do País, dentre os quais destacam-se: o Concurso Nacional Luiz Vilela 2008, de Minas Gerais, com o conto “A mangueira da nossa infância”; o concurso Newton Sampaio 2009, do estado do Paraná, com o conto “Aila”; o Concurso Maximiano Campos, do Recife 2007, com o conto “A praia”; e o concurso de contos Prêmio Ignácio de Loyola Brandão 2011, com o conto “Fazenda Nova América”, dentre outros.  Lançou em 2013 o livro “A mangueira da nossa infância”, que reúne estes e outros contos e foi vencedor no Proac 2011, da secretaria da cultura de estado de São Paulo.

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