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5 poemas de Paula Autran

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Para Deter a Enxurrada

Escrever como quem canta uma canção que faz chorar.
Escrever como quem crê. 
Escrever como uma mãe que vê seu filho pela última vez.

Escrever para rasgar o peito com as próprias mãos
para fazer sangrar 
para fazer doer
para fazer chorar.

Escrever como quem toma a última dose de morfina,
como quem bebe a última gota de água,
como quem usa a última bala na agulha.
Escrever como o alguém 
que acabou de ser expulso 
do ventre de sua mãe,                                                                                                                          como alguém que acabou                                                                                                                         de ser expulso do Paraíso.

Escrever como quem goza pela primeira vez,
como quem ama pela primeira vez,
como quem puxa o ar na inspiração final.

Escrever como alguém que se                                                                                                            balançana beira do abismo,                                                                                                                           que abre os braços
para se jogar do precipício. 

Escrever para lembrar do que dói
para que pare de doer
para que doa mais.
Escrever para ferir.

Escrever para que a chuva venha,
para que o sol queime,
para que o frio arda.

Escrever no fio do facão,
no olho do furacão,                                                                                                                                    na boca do vulcão.

Escrever sem esperar resposta, 
sem esperar aprovação, 
sem esperar sentido.

Escrever para deter 
a enxurrada.




  

Todo mundo que eu conheço.

Todo mundo que eu conheço tem levado
muito a sério a palavra envelhecer.
Todo mundo que eu conheço
tenta loucamente dar um sentido à 
essa palavra, verbo, sentença, definição, 
sina.

Então, eles se olham com muita seriedade
e fazem caras de sérios
e circunspectos

e falam muito
sobre coisas como: 
o que estão fazendo,
o que estão pensando
e como estão cansados.

Todo mundo que eu conheço
termina as festas muito cedo
porque estão cansados e ficarão
muito cansados amanhã
porque estão muito cansados 
hoje.

Todo mundo que eu conheço tem quase 
quarenta
ou quarenta mesmo
ou quarenta e uns poucos
e parecem muito amedrontados.

E eu que fiquei com muito medo
muito antes dos quarenta agora
quero rir,
quero dançar
quero dormir muito tarde quando posso

e quero acordar muito cedo
e rir com meu filho
e dançar com ele no meio da sala,
no meio do quarto,
no meio da rua.

Quero escrever muitas peças de teatro que
ninguém vê,
que ninguém lê, que ninguém monta e
me divertir mesmo assim.

Quero chegar na festa e falar besteira
e olhar para as nuvens e rir com gente 
que não vejo há 
vinte anos quando era 
jovem e muito séria,

pois muito jovem eu não sabia 
que
quem não tem medo de morrer
morre apenas uma vez.






 Tudo que nunca fizemos juntos.

Acabei de te mandar pelo correio uma caixa
na qual escrevi assim:
tudo que nunca fizemos juntos.

Lá tem uma viagem ao Chile,
uma ida ao Ceasa,
a compra de um apartamento na
Rua Arthur de Azevedo, em
Pinheiros.

Lá tem também
uns passeios de bicicleta aos domingos
e a festa do nosso casamento.

Tem o nascimento da Clarissa
e uma ida à Rússia para tomar vodka
legítima e transar sob a neve,
sendo observados por Lênin.

Tem mais umas músicas que
a gente não conhecia,
e um curso de história da arte
para fazermos juntos e
arrumarmos um jeito diferente de brigar
com conhecimento de causa.

Tem mais um ou outro sentimento
que a gente não sentiu
e algumas brigas (poucas) que a gente
não brigou.

Tem também um pôr do sol
diferente,
tem a aurora boreal
que a gente não viu

e tem uma ou outra receita de carne assada
que eu não cozinhei para você,
com as ervas que te faziam tanta falta
na minha comida
cheia de afeto e pouca razão.

Então, quando essa caixa chegar aí
faça o seguinte:
abra, leia com calma
e faça um mapa
com tudo o que a gente não fez junto.

Isso tenho certeza, vai te ajudar
a não repetir diariamente
todo o traçado da nossa vida
anterior.

Isso vai te ajudar a
reconstruir uma vida,
sem copiar ipsis literis
tudo o que fizemos,
construímos,
sonhamos,
vivemos,

ao lado de alguém que nem faz idéia
de que pisa todos os dias no mesmo chão
que o nosso amor
adubou.

  




 Meu novo dicionário.

A chuva cai e eu não consigo escrever os mil 
textos pendentes
nem dar os mil telefonemas urgentes
nem ir nadar e perder as mil calorias a mais.

Só penso que depois de amanhã
você faz três anos
e, portanto, eu faço quatro.
E para alguém de quatro anos
nem sei muita coisa.

Você sabe bem mais,
sabe até daquilo que tola eu 
pensei que poderia te esconder 
para sempre.

Passa pela rua e enxerga tudo:
as formigas carregando as folhas, 
o espinho no talo da flor
a migalha do pão caído no chão
e de novo a formiga que vai levá-la depois.

Você vê o ciclo todo da vida
e eu passo tropeçando (e esmagando)
tudo o que habita abaixo 
da sola do meu sapato. 

Nesses anos aprendi a só acelerar o passo 
quando
surge o degrau mais alto da calçada,

e a renomear tudo,
principalmente a palavra amor,
que desde que você chegou por aqui, 
nunca mais foi usada 
em vão.





Ode aos jornais.

Eu gosto dos jornais, das revistas.
Gosto de deitar ao sol lindo como o de agora
e tomar cerveja e ler revistas, jornais. 

E gosto especialmente dos jornalistas 
de ver como pensam nas manchetes,
nos olhos, nos lides, nos abres.

Gosto dos jargões, da inteligência, 
da objetividade buscada e nunca encontrada,
porque impossível.

Gosto desses Sísifos das palavras.
Cresci entre laudas, me eduquei ouvindo 
o barulho aconchegante
das máquinas de escrever.

Fui criança intrusa nas redações gigantescas 
dos jornais
Fui colaboradora, estagiária, foca.

E torço para que nunca se acabe a possibilidade de 
correr contra o vento atrás da fugidia página de jornal, 
que misturada à areia, insiste em não se deixar 
aprisionar entre meus dedos ávidos.

 
Poemas de Manifesto de mim mesma (Editora Patuá), 2014

Ilustrações de Natália Lemos



Autora do livro de poemas Manifesto de mim mesmaPaula Autrané mestre (e doutoranda) em artes cênicas pela ECA/USP. É formada em história (USP) e jornalismo (PUC). É autora do livro infantil Vovó Rock and Roll (editora Prumo), co-autora da peça infanto-juvenil Tirando um Som(editora Paulus), do relato jornalístico A Volta dos Mutantes (sobre a banda de rock, Editora Publisher Brasil), e de Peças (edição própria) com cinco peças de sua autoria. Teve seis peças encenadas, entre elas a infantil Armário Mágico, com a qual foi indicada como autora revelação no Prêmio FEMSA. A peça também foi adaptada para o Teatro Rá Tim Bum, da TV Cultura. É integrante do Centro de Dramaturgia Contemporânea. Também ministra aulas de dramaturgia e escreve textos jornalísticos. E muito recentemente passou a se auto-intitular escritora.


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