Quantcast
Channel: mallarmargens
Viewing all articles
Browse latest Browse all 5548

Raul de Leoni e a Melancolia da Eternidade

$
0
0
Afinal, é o costume de viver
que nos faz ir vivendo para frente;
nenhuma outra intenção, mas simplesmente
o hábito melancólico de ser...
(Em Decadência)

Raul de Leoni (1895-1926) foi, ao lado de Moacir de Almeida e Da Costa e Silva, o grande poeta da Belle Époque brasileira, essencialmente por representar quase todos os estilos poéticos de uma época, em um perfeito espelhamento. Somente em sua Luz Mediterrânea, publicada em 1922, há poemas que se aproximam de um Neo-Parnasianismo e de um Pós-Romantismo, outros plenamente simbolistas, e tantos outros que somente traçam o gosto personalíssimo do poeta, cuja alma focalizava as civilizações antigas, num ambíguo desdém à civilização contemporânea; ambíguo pois, ao mesmo tempo em que a poesia de Raul de Leoni simplesmente não dava amostras de qualquer modernidade (no sentido vanguardista, visto que a sua obra foi escrita durante a ebulição do Modernismo brasileiro e publicada exatamente no ano da Semana de 1922), as suas observações acerca das explosões dos movimentos vanguardistas foram extremamente conscientes.
Àquela época, além dos Simbolistas da primeira geração que ainda viviam e publicavam esparsamente, Gilka Machado já calcava a sua gloriosa carreira literária e Hermes Fontes também trilhava o rumo célebre, mas ambos eram, então, Neo-Simbolistas sem concessões para versos neo-parnasianos ou huguianos, muito comuns a Moacir de Almeida, Da Costa e Silva.

Raul, por sua vez, quando declarava-se uma “Alma de origem ática, pagã/ Nascida sob aquele firmamento/ Que azulou as divinas epopeias/ Sou irmão de Epicuro e de Renan,/ Tenho o prazer sutil do pensamento/ E a serena elegância das ideias...” (em Pórtico) aproxima-se dos helenistas e de um epicurismo consciente (ao contrário do que os nossos ultra-românticos cultuaram, distorcendo o conceito de prazer do filósofo), que viria, em alguns poemas, desaguar em um estoicismo não muito distante do que pregava um Marco Aurélio, das Meditações, por exemplo.
 
Raul de Leoni: distante do dandismo de vários Simbolistas.
Créditos: ABP Casa Raul de Leoni
Mas como um poeta Simbolista, também partilhou da visão do malogro tão cantada por Cruz e Sousa, Alphonsus de Guimaraens e pelos portugueses (Antônio Nobre, principalmente). No belíssimo “Noturno”, eis que se faz o poeta um assinalado pelo seu tristonho destino - e ele o acata, resignado de sua “maldição”. É um longo poema, mas é essencial que seja transcrito por completo:

NOTURNO (em Luz Mediterrânea)

No parque antigo, a noite era afetuosa e mansa,
Sob a lenda encantada do luar...

Os pinheiros pensavam cousas longas,
Nas alturas dormentes e desertas...
O aroma nupcial dos jasmins delirantes,
Diluindo um cheiro acre de resinas,
Espiritualizava e adormecia
O ar meigo e silencioso...

A ronda dos espíritos noturnos,
Em medrosos rumores,
Gemia entre os ciprestes e os loureiros...

Na penumbra dos bosques, o luar
Entreabria clareiras encantadas,
Prateando o verde malva das latadas
E as doces perspectivas do pomar...

As nascentes sonhavam, em surdina,
Numa tonalidade cristalina,
Monótonos murmurinhos,
Gorgolejos de águas frescas...

Sobre a areia de prata dos caminhos,
A sombra espiritual dos eucaliptos,
Bulindo ao sopro tímido da aragem,
Projetava ao luar desenhos indecisos
Ágeis bailados leves de arabescos,
Farândolas de sombras fugitivas...

E das perdidas curvas das estradas,
De paragens distantes,
Como fantasmas de serenatas,
Ressonâncias sonâmbulas traziam
A longa, a pungentíssima saudade
De cavatinas e mandolinatas...

Lembro-me bem, quando em quando,
Entre as sebes escondidas,
Um insidioso grilo impertinente,
Roendo um som estridente,
Arranhava o silêncio...

No parque antigo, a noite era afetuosa e mansa,
Sob a lenda encantada do luar...

Eu era bem criança e, já possuindo
A sensibilidade evocadora
De um poeta de símbolos profundos,
Solitário e comovido,
No minarete do solar paterno,
Com os pequeninos olhos deslumbrados,
Passei a noite inteira, o olhar perdido,
No azul sonoro, o azul profundo, o azul eterno
Dos eternos espaços constelados...

Era a primeira vez que eu contemplava o mundo,
Que eu via face a face o mistério profundo
Da fantasmagoria universal
No prodígio da noite silenciosa.

Era a primeira vez...
E foi aí, talvez,
Que começou a história atormentada
Da minha alma, curiosa dos abismos,
Inquieta da existência e doente do Além...
Filha da maldição do Arcanjo rebelado...
Sim, que foi nessa noite, não me engano,
- Noite que nunca mais esquecerei -
Que – alma ainda em crisálida - velando
No minarete do solar paterno,
Diante da noite azul – eu senti e pensei
O meu primeiro sofrimento humano
E o meu primeiro pensamento eterno...

Como fora do Tempo e além do espaço,
Sem ser princípio, espírito sem fim,
Sofria toda a humanidade em mim,
Nessa contemplação imponderável!

Já nem ouvia o trêmulo compasso
Das horas que fugiam pela noite.
Que os olhos soltos pela imensidade,
Numa melancolia deslumbrada,
Imaginando coisas nunca ditas,
Todo eu me eterizava e me perdia
Na ideia das esferas infinitas,
Na lenda universal das distâncias eternas...

No parque antigo, a noite era afetuosa e mansa,
Sob a lenda encantada do luar...

Foi nessa noite antiga
Que se desencantou para a vertigem
A suave virgindade do meu ser!

Já a lua transmontava as cordilheiras...
Cães ladravam ao longe, em sobressalto;
No pátio das mansões, na granja das herdades,
O cântico dos galos estalava,
Desoladoramente pelos ares,
Acordando as distâncias esquecidas...

E, então, num silencioso desencanto,
Eu fui adormecendo lentamente,
Enquanto
Pela fria fluidez azul do espaço eterno
Em reticências trêmulas, sorria
A ironia longínqua das estrelas...


Pouco comentada é a feição Pós-Romântica de Raul de Leoni. Em seus versos do estilo, não chega a cantar com exatidão a sua musa – contradizendo o descritivismo parnasiano -, mas discorre de uma maneira intimista, não raramente fantasista, brumosa, sobre a relação entre o sujeito-lírico e a sua amada, de certa forma precedendo os nossos Penumbristas e Impressionistas literários (Pádua de Almeida, Onestaldo de Pennafort, por exemplo). Vejamos um exemplo:

HISTÓRIA ANTIGA (em Luz Mediterrânea)


No meu grande otimismo de inocente,
Eu nunca soube porque foi... um dia,
Ela me olhou indiferentemente,
Perguntei-lhe o que era... Não sabia...

Desde então, transformou-se, de repente,
A nossa intimidade correntia
Em saudações de simples cortesia
E a vida foi andando para a frente...

Nunca mais nos falamos... vai distante...
Mas, quando a vejo, há sempre um vago instante
Em que seu mudo olhar no meu repousa,

E eu sinto, sem no entanto compreendê-la,
Que ela tenta dizer-me qualquer cousa,
Mas que é tarde demais para dizê-la...

O diálogo que há com o soneto “O Último Escombro Florido”, de Onestaldo de Pennafort (em Recapitulações, de 1934), é evidente:

(…)

Mas tudo isso se foi... E ontem, passando,
por tua casa, ao ver o teu jardim
que a hera daninha, aos poucos, foi matando,

pensei em ti, no nosso amor, em mim.
Em nós também – eu já nem sei quando -
houve uma cousa que morreu assim.

Nas célebres antologias sobre o Simbolismo, Raul de Leoni figura como um poeta de verbo maior, muito superior àqueles poetas que, apesar de se terem declarado totalmente Simbolistas, não produziram uma obra significativa como a do autor de Luz Mediterrânea. Péricles Eugênio da Silva Ramos, ao falar sobre a posição do vate petropolitano em nossa literatura, nos dá uma posição mais ponderada do que a de Andrade Muricy (que o colocava como um poeta hors concours, espelho da Renascença): “Sem falar em seu platonismo, que já seria decisivo (os simbolistas acreditavam no mundo das ideias, e não nas coisas, meras aparências), também sua doce melancolia, certo esfumaçamento de contornos, sua expressão mansa e espiritual, colocam-no sob o signo do Símbolo.” É evidente que o Simbolismo de Raul de Leoni passa longe da expressão abstrata e de livre-associação de alguns poemas de Cruz e Sousa (principalmente em seus últimos livros), mas negar a característica simbolista em sua obra é negar o próprio poeta. Inevitavelmente, o grande exemplo é

 A HORA CINZENTA  (em Luz Mediterrânea)

Desce um longo poente de elegia...
Sobre as mansas paisagens resignadas,
Uma humaníssima melancolia
Embalsama as distâncias desoladas...

Longe, num sino antigo, a Ave-Maria
Abençoa a alma ingênua das estradas;
Andam surdinas de anjos e de fadas
Na penumbra nostálgica, macia...

Espiritualidades comoventes
Sobem da terra triste, em reticência,
Pela tarde sonâmbula, imprecisa...

Os sentidos se esfumaçam, a alma é essência,
E entre fugas de sombras transcendentes,
O Pensamento se volatiliza...

Em um outro soneto de Leoni há um diálogo belíssimo com uma obra do poeta simbolista Silveira Neto, autor do importantíssimo Luar de Hinverno (1901). Vejamo-los:

LEGENDA DOS DIAS  (em Luz Mediterrânea)

O Homem desperta e sai cada alvorada
Para o acaso das cousas... e, à saída,
Leva uma crença vaga, indefinida,
De achar o Ideal nalguma encruzilhada...

As horas morrem sobre as horas... Nada!
E ao Poente, o Homem, com a sombra recolhida,
Volta, pensando: “Se o Ideal da Vida
Não veio hoje, virá na outra jornada...”

Ontem, hoje, amanhã, depois, e, assim,
Mais ele avança, mais distante é o fim,
Mais se afasta o horizonte pela esfera.

E a Vida passa... efêmera e vazia:
Um adiamento eterno que se espera,
Numa eterna esperança que se adia...

E o soneto “Sombra” de Silveira Neto, presente em Ronda Crepuscular (1923):

Escureçam-no as trevas e a sombra
da morte.
(cap. 3, Nº 5)


O Ocaso, a arder no seu deslumbramento,
Põe fímbrias de ouro pelo céu. Na estrada
O crepúsculo segue o passo lento
De alguém que vai ao fim de uma jornada.

Vede-o: só tem por acompanhamento
A própria sombra pelo solo; e cada
passo que muda reza-lhe o memento;
E a sombra é cada vez mais alongada.

Outra maior, porém, seu passo apanha
No íntimo d'alma, a suplicar piedade;
Pobre viajor que desces a montanha.

É aquela que nos traz, sombra dorida,
O crepúsculo amargo da saudade
Ao fim da marcha fúnebre da vida.

Inegável também, como já se deve ter percebido, é o cromatismo crepuscular na obra de Raul de Leoni, como um cantor das civilizações e dos impérios em suas perpétuas decadências; de certa forma, uma aproximação temática, não estética, do poeta com o Decadentismo francês. A “beleza do que se finda” está presente não somente no já transcrito “A Hora Cinzenta”, mas também em “Torre Morta do Ocaso” (“Como és profética de longe... quando,/ Na moldura do poente de ouro e rosa,/ Interpretando todos os destinos,/ Vais por todos os ventos espalhando/ Tua filosofia dolorosa/ Na balada sonâmbula dos sinos!...”) e mais evidentemente em “Melancolia” (“Poente!/ Estas horas que vão passando, surdamente/, Nunca mais voltarão no tempo imaginário/ No jardim solitário,/ Estão-se desfolhando, ingloriamente,/ Tantas rosas divinas, a sonhar.”) e no belíssimo “Crepuscular”, soneto que transcreverei por completo:

CREPUSCULAR  (em Luz Mediterrânea)

Poente em meu jardim... O olhar profundo
Alongo sobre as árvores vazias,
Essas em cujo espírito infecundo
Soluçam silenciosas agonias.

Assim estéreis, mansas e sombrias,
Sugerem à emoção com que as circundo
Todas as dolorosas utopias
De todos os filósofos do mundo.

Sugerem... Seus destinos são vizinhos:
Ambas, não dando frutos, abrem ninhos
Ao viandante exânime que as olhe.

Ninhos, onde vencidas de fadiga,
A alma ingênua dos pássaros se abriga
E a tristeza dos homens se recolhe...

À época em que vivia o poeta, muito comum era o Cientificismo e a pregação de superioridade de raças (muitas das teses baseadas em testes de frenologia, como as absurdas considerações criminológicas de Lombroso). Um exemplo: discutia-se naquele início de século a possibilidade da realização de uma eugenia – de uma “boa geração”, portanto; ou seja, da separação dos “bons” (brancos, ricos, atletas) e dos “ruins” (negros, epilépticos, alcoólicos) para que os então considerados danosos à sociedade confirmassem a crença de “esterilização” e desaparecessem graças às suas condições biológicas desafortunadas, de acordo com as ciências da época. Raul de Leoni escreveu a sua “Eugenia” - de uma genialidade ímpar -, mas não referente às atrocidades que poder-se-iam prever do método cientificista:

EUGENIA  (em Luz Mediterrânea)


Nascemos um para o outro, dessa argila
De que são feitas as criaturas raras;
Tens legendas pagãs nas carnes claras
E eu tenho a alma dos faunos na pupila...

Às belezas heroicas te comparas
E em mim a luz olímpica cintila.
Gritam em nós todas as nobres taras
Daquela Grécia esplêndida e tranquila...

É tanta a glória que nos encaminha
Em nosso amor de seleção, profundo,
Que (ouço ao longo o oráculo de Elêusis),

Se um dia eu fosse teu e fosses minha,
O nosso amor conceberia um mundo,
E do teu ventre nasceriam deuses...

Raul de Leoni, ao lançar a sua Luz Mediterrânea em 1922, correu o mesmo risco de muitos grandes poetas celebrados àquela época mas devorados pela convenção geral ao Modernismo (como, por exemplo, Hermes Fontes). Salvou-o, talvez, a sua serenidade de expressão, colocando-o como um poeta formal, vasto em penumbras e metáforas filosóficas, mas sem partir para a verborragia de alguns poetas menores ou da pura e fria poesia de acaso de um Martins Fontes. O seu caso situa-se ao lado da explosão expressional de Augusto dos Anjos. Se ambos diferenciavam-se absolutamente daquele momento de erupção do Modernismo – e por isso não foram devidamente apreciados em vida (Leoni foi mais do que Augusto, claramente) -, também nos é evidente que as suas poéticas tornaram-se fortalecidas com o passar do tempo, pois são muito à frente de qualquer estouro vanguardista ou de adaptações modistas; fortaleceram-se também porque do Simbolismo nutriram-se com o que havia de mais revolucionário: a imagética do ser atemporal, que é, afinal, a condição eterna do homem sob o signo da sugestividade.





Viewing all articles
Browse latest Browse all 5548

Trending Articles