então
em perene forma permanece em idade e fortuna
tudo que no tempo não muda nem tempos nem vontades
nem mentira nem verdade penetra a forma profunda
somente em mim depositou-se irrelevante mudança
talvez desnecessária dança que o cair das folhas trouxe
talvez inseto da noite que de seu brilho descansa
quem sabe silêncio de outrora agora outra hora propaga
antes de ilusão inata à matéria apurar sua volta
em perene forma precisa mas dispersa inexata
somente em mim depositou-se irrelevante reverso
de não mais crer nos versos dessa inútil lira agridoce
as capas os discos
ontem eu vi o disco da vaca à venda na galeria
onde há muito naqueles campos estranhos me perdi
entre os riscos do vinil motocicleta e sinfonia
ontem eu vi um velho em um quadro carregando lenha
adornando em parede destroçada a capa de um álbum
e a iluminada escuridão de um dirigível de chumbo
ontem eu vi o álbum branco que depois de muitos anos
pude perceber as matizes dispersas de suas cores
e seu discreto nome de besouro impresso em relevo
mas há muito dispostos em silêncio seus sons evocam
sonora imagem retida na retina da memória
as tardes as manhãs
as tardes quentes e iguais a todas as outras as manhãs
desprovidas de ânsias vãs seguem lentamente aos currais
como se guardassem mais que o passado dos dias de amanhã
e perene a si tece a tarde disposta sobre nós
como noite de homem só como tempo que não se mede
agudo vento que segue sem rumo sem prumo sem voz
iguais a todas as outras se tramam em nós as marcas
em caminho aberto a faca como vento leva suas folhas
iguais a todas as horas na erma eternidade do nada
e perene a si tece a tarde disposta sobre nós
as tardes quentes e iguais a todas as outras as manhãs
os semáforos os centavos
assim estende o homem no asfalto seu pasto de esmolas
em segundos ao público entrega a dança dos centavos
e desarmado de adornos seu palco entre faixas se arma
um que nestas postiças pernas trôpegas se equilibra
um que entre as mãos lança em chamas de querosene seu risco
outro exposto em malposto corpo ensejo de compaixão
este escambo estas mãos este instante entre o tráfego parado
pelos vidros seus gestos estendidos em doação
outros absortos somente na luz indicando a espera
para passageiros e condutores que apenas aguardam
que o tempo ainda lhes conceda algum possível alento
dois rios
há em minha terra dois rios
silenciosos
um
estendido em verde tapete de aguapé
onde não mais trafegam canoas
apenas diminutas criaturas buscando seu pasto
outro
árido tapete árabe
onde todos caminham acima de sua face
as cinzas as palavras
pintada em verbo angústia nenhuma palavra incendeia
decantada a mesma iluminada metáfora escura
seguindo em eterna fuga do discurso que se perca
expressão que inexata deseja toda exatidão
envolta entre sim e não se refaz a dúbia certeza
exatidão toda inexata que deseja expressão
qual verbo abandonado por remota prosa incontida
qual chama irrestrita escrevendo seu ardor devastado
cinza palavra ao vento calado palavra descrita
como que semeando a si espalhando do vento ao gosto
as cinzas em torno de todas as obras a destruir
* * *
Adriano Lobão Aragão nasceu em Teresina, 1977. Assessor pedagógico da Editora Saraiva. Coeditor da revista eletrônica dEsEnrEdoS. Autor, dentre outros, de Entrega a própria lança na rude batalha em que morra (poemas, 2005), Yone de Safo (poemas, 2007) e Os intrépidos andarilhos e outras margens(romance, 2012). A nova edição mantém o texto original da primeira edição de as cinzas as palavras, lançada em 2009 [do qual extraiu-se esta seleta] e que contou com uma tiragem limitada de apenas 80 exemplares. Site. Blog. Email.